O Código Penal Brasileiro pune severamente a prática do aborto, permitindo-o apenas em dois casos: se não houver outra forma de salvar a vida da gestante ou no caso de gravidez resultante de estupro.

Paralelamente a isso, mulheres brasileiras, em sua maioria pobres e negras, compõem a triste estatística de milhões de casos de aborto ilegal e inseguro realizados no País. Essa prática, realizada sem as mínimas condições técnicas e de assepsia, têm provocado um alto índice de mortalidade materna no Brasil.

Nos últimos tempos, a discussão sobre aborto vem crescendo nas três esferas de poder do governo. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), instalou, em 6 de abril deste ano, uma comissão para a revisão das legislações punitivas sobre aborto, a Comissão Tripartite, composta por membros do Poderes Executivo, Legislativo e da sociedade civil.

A sociedade civil, por sua vez, está organizada e articulada. As "Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro", integradas por representantes de diversas organizações feministas, vêm imprimindo esforços no sentido de dar maior visibilidade à questão, objetivando a incorporação na legislação do direito ao aborto como uma escolha da mulher.

Existem mais de cem proposições de lei em trâmite no Congresso Nacional indexadas como aborto. Destas, são acompanhadas de perto pelo CFEMEA, as que significam efetiva mudança no tratamento da questão pela legislação brasileira.

Algumas dessas proposições, alheias a todas as mudanças e evoluções havidas na sociedade, desde a edição do Código Penal, afrontam os mais básicos direitos das mulheres, chegando ao extremo de pretender criminalizar o aborto realizado nos casos em que há risco de morte para a gestante, como o Projeto de Lei 7235/2002, de autoria do deputado Severino Cavalcanti (PP/PE), que nega à mulher grávida o direito à preservação da própria vida.

A deputada Ângela Guadagnin (PT/SP) e o deputado Luiz Bassuma (PT/BA) apresentaram conjuntamente projeto que pune o aborto humanitário, ou seja, aquele realizado quando a gravidez é resultante de estupro. Neste caso, o Estado estará obrigando a mulher a gestar e criar um indivíduo, fruto de um grande trauma, ampliando, tortuosamente, as conseqüências da violência sofrida.

Nesta mesma linha, existem outros projetos que pretendem endurecer ainda mais o estatuto repressivo em vigor, tornando o aborto crime hediondo. Esses projetos são de autoria dos deputados Francisco Silva (PPB/RJ), Gilvaldo Carimbão (PSB/AL) e Osmânio Pereira (PTB/MG).

Também de autoria do deputado Severino Cavalcanti (PPB/PE) há proposta de emenda constitucional, para incluir a proteção legal à vida do nascituro a partir da sua concepção. Esta proposta está apensada à PEC 571/2002, apresentada pelo deputado Paulo Lima (PMDB/SP) que, nos mesmos moldes, se aprovada, impedirá qualquer alteração do Código Penal no sentido de permitir a realização do aborto, neutralizando, inclusive, as permissões legais já existentes.

Neste ano, a deputada Ângela Guadagnin (PT/SP) apresentou Projeto de Lei que visa impedir a comercialização, a recomendação e distribuição feita pelo SUS (Sistema Único de Saúde) do método contraceptivo emergencial conhecido como "pílula do dia seguinte", considerando-a como método abortivo merecedor de repressão legal.

Recentemente, em 2 de junho último, foi rejeitado, na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF-CD), Projeto de Lei apresentado pelo deputado Elimar Máximo Damasceno (PRONA/SP), que chegava ao absurdo de exigir o assentamento de óbito e sepultamento das perdas fetais.

Na contramão desses retrocessos pretendidos, existem, porém, proposições que pretendem garantir a preservação da saúde das mulheres e sua faculdade de escolha, permitindo-lhes o livre exercício de seus direitos, inclusive no que concerne a levar a termo ou não uma gravidez indesejada ou que lhe ofereça risco.

Há projetos que prevêem a descriminalização do aborto em qualquer caso, ou que descriminalizam somente a conduta da própria mulher que se submete ao abortamento. Outros, visam a alteração do artigo 128 do Código Penal, estendendo a permissão legal para a realização do aborto, nos casos de fetos anencéfalos (sem formação cerebral).

Quanto aos fetos anencefálicos, vale lembrar que muitas mulheres vêm sendo obrigadas a prosseguir numa gravidez que, seguramente, não resultará na criação daquele indivíduo que está sendo gerado. É científica a afirmação de que não existem seres humanos anencefálicos e que a gestação deste feto resultará na sua morte ainda no ventre ou logo após o nascimento. Assim, não permitir a interrupção da gravidez nesses casos, é submeter a mulher a uma bárbara tortura psicológica, na medida que o Estado a obriga a gerar um/a filh@ para enterrá-l@ logo após o seu nascimento, ou a submete à situação de extremo risco quando o feto morre ainda no ventre.

Ainda assim, hoje no Brasil, o poder judiciário é lento demais para julgar as ações individuais de mulheres que pretendem interromper gravidez de feto anencefálico. Essas ações, muitas vezes, são arquivadas, pois perdem seu objeto em decorrência da morte ou nascimento seguido de morte desses fetos. É diante disso e de outras tantas situações, que se faz absolutamente necessária a permissão legal do aborto.

Vale ressaltar, que o aborto inseguro deve ser tratado como uma questão de saúde pública, grande responsável pelo alto índice de mortalidade de mulheres no Brasil, em sua maioria jovens e pobres.

Os Comitês da ONU sobre os Direitos Econômicos Sociais e Culturais, A Plataforma de Ação de Beijing, o Comitê CEDAW (Convenção e Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher) e o Comitê relativo ao PIDhESC (Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), recomendam a revisão da legislação punitiva sobre o aborto, garantindo às mulheres acesso aos serviços que permitam a realização do procedimento com qualidade e de forma segura.

A criminalização do Aborto ou sua permissão restrita refletem de forma perversa na saúde das mulheres. Assim, e em sintonia com as recomendações internacionais, o que se espera é que o Congresso Nacional trabalhe no sentido de rever as normas repressivas brasileiras, permitindo às mulheres o livre exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, conferindo-lhes, a partir de suas próprias orientações morais e religiosas, a liberdade de escolha quanto à interrupção da gravidez indesejada.


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