Alcilene Cavalcante
Alcilene Cavalcante é mestra em História pela Unicamp, doutoranda em Literatura pela UFMG e coordenadora do projeto Católicas em Campanha pela Legalização do Aborto da organização Católicas pelo Direito de Decidir

Em uma atividade sobre a questão do aborto, no interior de um salão paroquial, em uma dessas nossas andanças pelo Brasil, uma senhora que ouvia tudo atentamente, aproximou-se de mim, com os olhos lacrimejantes e um tom cúmplice, de quem sabia do que eu estava falando, e disse: "há poucos dias, participando desses movimentos, é que eu descobri que meu marido me estupra..." (relato de uma oficina de CDD)

É fato que a definição de um país democrático passa invariavelmente pelo Estado laico, pela eqüidade de direitos de seus/suas cidadãos/ãs e, entre outros aspectos, pelo acesso irrestrito aos serviços básicos: alimentação, saúde, educação e habitação. Contudo, apesar dessa definição ser identificada na Constituição brasileira, o que se verifica na prática é um fosso, um abismo entre a legislação e a vida cotidiana da sociedade.

Sabe-se que há diferentes categorias informais de cidadãos/ãs e que estes têm direitos e acessos distintos: a) há os que têm poder econômico; b) há os que têm poder político, isto é, são e/ou estão próximos de pessoas que ocupam posições-chave de decisões e, como tais, são influentes1; c) há os que são letrad@s, possuindo algum trânsito; d) há @s que não se encaixam em nenhuma das categorias mencionadas. Além de essa última categoria compreender, certamente, a maioria da população brasileira, verifica-se, ainda, os recortes de gênero e de raça, ou seja, a cidadania também adquire formato diferenciado quando se trata de mulheres e de afro-descendentes.

Em meio à variedade de categorias informais de cidadãos/ãs, faz-se notório que a maioria da população brasileira tem muita dificuldade de ter assegurado seus direitos básicos. Aliás, parte expressiva da população muitas vezes não tem sequer idéia dos direitos que possui. É preciso lembrar o quanto é significativo o contingente de analfabetos e alfabetizados funcionais clássicos no Brasil, além dos analfabetos políticos. É preciso ainda lembrar que boa parte da população encontra nos templos religiosos seu principal, quando não único, meio de acesso à informação e ao lazer, o que permite desvelar as verificadas fissuras de nosso Estado, oficialmente laico.

Além disso, o Brasil é um dos países de maior concentração de renda do mundo, por conseguinte, de acentuada desigualdade social, o que se observa mais acentuadamente em determinadas unidades da federação, em que parte expressiva da população economicamente ativa tem vencimentos de até um salário mínimo. Ora, evidentemente, que em tais circunstâncias temos campo propício ao nepotismo, à comercialização de votos, à absorção completa pelo trabalho, afora à dívida social.

Nesse cenário, marcado ainda por uma cultura política autoritária, faltam tempo, compreensão e condições para que as pessoas participem da vida coletiva; faltam espaços públicos para o debate de questões concernentes à coletividade; as pessoas engajadas politicamente terminam se desdobrando em múltiplos papéis.

Desse modo, o sistema democrático brasileiro se torna tão enviesado e retalhado, que tratar de direitos reprodutivos, de legalização do aborto, parece falar de caviar ou de artigo de luxo. Tanto é assim que, ao nos referirmos à legalização do aborto, precisamos salientar, apesar da redundância, duas obviedades: a) defender a legalização do aborto, não é estimular, tampouco, obrigar as pessoas a fazerem aborto; b) defender a legalização do aborto, não é defender o aborto. Aliás, ser contra ou a favor ao aborto é uma falsa questão, pois mulher alguma gosta de fazer aborto, pelo contrário, mesmo um exame ginecológico dos mais simples - o papanicolau, por exemplo - costuma ser considerado invasivo e desconfortável para boa parte das mulheres.

Entretanto, esse é apenas o preâmbulo das atividades do projeto Católicas em Campanha pela Legalização do Aborto, realizadas em parceria com as entidades-membro das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, com a Marcha Mundial de Mulheres, entre outras. Realizamos atividades, até o momento, em 11 Estados brasileiros, totalizando mais de 30 oficinas e envolvendo aproximadamente 800 pessoas. Nelas, notamos que muitas mulheres procuram superar dificuldades de todos os tipos para participarem, refletirem e debaterem as implicações da legislação punitiva sobre o aborto, apesar dos referidos indícios de fragilidade da democracia brasileira e da presença marcante de um traço cultural ainda misógino, segundo o qual a mulher é considerada inferior ao ho mem e, como tal, considerada incapaz de tomar decisões com responsabilidade.

Além disso, depois da primeira hora de atividade, ao emergir o conhecimento que s participantes têm sobre abortamento, evidencia-se que a maioria sabe de algum caso, que muitas vezes é bem próximo. E a questão do aborto, que antes parecia ser artigo de luxo, torna-se matéria de testemunho de tragédia, de sofrimento, de cotidiano da população, confirmando as tendências de pesquisas sobre essa questão. Mas, também testemunho de alívio por não encontrarem condições para levar adiante uma gestação indesejada.

Quando mencionamos, em tais atividades, que ocorrem mais de 1 milhão de abortos anualmente no Brasil, que cerca de 250 mil mulheres são internadas anualmente no SUS por complicações de abortos clandestinos; que abortos desse tipo configuram a 4ª causa de mortalidade materna; que o aborto clandestino acarreta a 2ª ocorrência de obstetrícia no SUS, sendo as mulheres mais afetadas pela legislação punitiva do aborto as mulheres negras, jovens e pobres, as pessoas se surpreendem. Isto porque, entre outros motivos, elas somente obtêm informação sobre a questão do aborto em templos religiosos ou de forma sigilosa, quando se vêem em circunstâncias de abortamento, de acompanharem alguém em tais condições ou de terem sabido de alguém que se encontrou em tais circunstâncias - e que, em muitos casos, não pode mais ter filhos, ficou internada ou até morreu. A expressão das faces das participantes é de alguém que esteve enganada, ao achar que o problema era somente seu!

Lamentavelmente, esse estarrecimento é verificado também nas faces de muitas de nossas companheiras que estão combativamente atuando em diferentes movimentos sociais brasileiros e que, em nossas atividades, realizam, pela primeira vez, a reflexão e o debate sobre a problemática do aborto.

Curiosamente, até esse ponto da oficina não abordamos a questão que deveria ser um direito individual básico, qual seja, a pessoa ter o direito de decidir sobre o próprio corpo, mas tratamos a questão do aborto como matéria de saúde pública e de justiça social. Paralelamente, procuramos suscitar a formação de um quadro sobre as contingências que levam uma mulher a interromper a gestação. Normalmente, além de apontarem a falta de condições materiais e o abandono do "parceiro", entre outros, é muito comum indicações relativas à violência sofrida pelas mulheres, tanto simbólica, sexual, como física. Mulheres, nessa ocasião, tiram a mordaça sobre a violência doméstica, em particular a sexual. Daí somos nós que ficamos estarrecidas com a incidência da violência contra a mulher, legitimada socialmente por uma mentalidade misógina! Desse modo, relações afetivas enviesadas pela violência de gênero dificultam mesmo o uso de preservativos, o planejamento familiar, e tornam comum a gravidez indesejada. Daí questionarmos em que circunstâncias nos reproduzimos.

Quando mostramos que a história do catolicismo é marcada pela polifonia, sendo a questão do aborto uma matéria controversa no interior da própria Igreja, não sendo, inclusive, matéria de dogma e, como tal, podendo ser discutida por católicos e católicas, @s participantes se sensibilizam de que há muito o que se debater sobre a questão do aborto.

Realizar esse debate com a sociedade, compreendendo que a nossa democracia ainda está por ser construída, é urgente, especialmente quando confirmamos que a nossa população não tem acesso ao básico, a ponto de sequer identificar quando está sendo violentada, quanto menos de estar sensibilizada para reivindicar direitos reprodutivos e de compreender que deveria ter o direito de decidir sobre seu próprio corpo. Esse é o desafio que os movimentos sociais, em particular, nós, do movimento de mulheres e feministas, temos que enfrentar.

(1) O conceito de poder político utilizado aqui ancora-se nas análises que verificam a falta de distinção entre o público e o privado, ver: Sonia Alvarez (2000) Sergio Buarque de Holanda (2001) e Raymundo Faoro (1989).


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