Rossina Guerrero é uma feminista peruana que trabalha na organização não governamental PROMSEX, Centro de Promoción y Defensa de los Derechos Sexuales y Reproductivos. No mês de agosto, esteve no Brasil para participar do seminário organizado pelo CFEMEA: "Estratégias latino-americanas pela legalização do aborto e autonomia reprodutiva das mulheres". Nesta entrevista, ela nos conta um pouco de sua história, sua formação como feminista e dos desafios que são enfrentados no Peru para alcançar os direitos reprodutivos das mulheres.
CFEMEA - Para começar, conte-nos um pouco sobre sua história?
Rossina Guerrero - Nasci e cresci em um bairro de classe média de Lima, capital do Peru. Meus pais são migrantes de tradição agrária do norte do país. Minha família é católica, inclusive um tio é sacerdote, mas apesar de nunca falarmos de maneira educativa sobre o aborto, a contracepção, a diversidade sexual e outros, estes temas se assumiram sempre como parte da vida diária. E cada vez estou mais convencida de que a indignação que nasceu em mim e me tornou feminista provém de minha própria mãe, que, como católica praticante, se indignava e levantava sua voz quando na televisão alguém dava uma opinião contrária aos direitos das mulheres. Assim, creio que muitas pessoas católicas não estão de acordo com o que a hierarquia diz e faz e vivem sua fé em consonância com suas aspirações e desejos sexuais e reprodutivos.
CFEMEA - Como foi sua entrada no movimento feminista?
Rossina Guerrero - Para minha dissertação de licenciatura trabalhei com mulheres que haviam abortado e chegavam a um hospital público, comecei como professora universitária aos 24 anos. No meu trabalho como docente sempre tratei temas de sexualidade e gênero, mas não tinha me autoreconhecido como feminista. Foi em 2000 que pensei em dar um giro em minha carreira, deixei de ser professora em tempo integral e passei a trabalhar em uma ONG com temas de saúde reprodutiva e mulher. Sentia que algo faltava e decidi fazer mestrado em políticas públicas, tendo contato com mulheres realmente extraordinárias do mundo feminista. Foi então que disse: "Acredito no que elas defendem, e acredito que sou feminista". Eu tinha quase 30 anos. Estou no PROMSEX desde janeiro de 2005.
CFEMEA - Legalmente, o aborto é permitido em que casos no Peru?
Rossina Guerrero - No Peru o aborto é ilegal. Temos como única exceção o chamado "aborto terapêutico", que não é passível de punição quando praticado por um médico com o consentimento da mulher para salvar sua vida ou evitar dano à sua saúde. Este tipo de aborto é legal desde 1924, mas até a hoje não existe um protocolo ou guia nacional que normatize sua aplicação nos serviços públicos de saúde. A maioria dos profissionais se negam a oferecer esta atenção. Mesmo legal não está ao alcance da maioria das mulheres que necessitam e por isso temos um total de 15% de mortes de mulheres associadas a doenças que surgiram durante a gravidez ou se complicaram com ela.
CFEMEA - Quais são as principais forças que resistem a discutir e a legalizar o aborto no Peru?
Rossina Guerrero - Um ator tradicional que sempre colocou muito esforço para impedir o debate democrático sobre o aborto no Peru tem sido a Igreja Católica, representada pelos seus líderes. Nos últimos tempos, têm surgido grupos chamados "laicos" que, sob os preceitos católicos, têm intervido na política pública. Eles são assessores de políticos e de partidos, congressistas, ministros, entre outros cargos públicos e fazem uso da plataforma formal e democrática social para impor e impulsionar uma visão de sexualidade e reprodução a partir do ponto de vista da religião. Eles obstruem toda forma de diálogo sobre o tema do aborto, polarizando a discussão e atacando com insultos e difamação quem trabalha pelo direito à vida das mulheres e por gestações desejadas. Creio que isto seja algo que se repete como panorama comum em todos os países da América Latina.
CFEMEA - Quais têm sido as estratégias bem sucedidas da PROMSEX para avançar o debate sobre o aborto no Peru?
Rossina Guerrero - O trabalho reforça que não apenas nós feministas vamos conseguir reverter as leis punitivas contra as mulheres que abortam. Temos gerado alianças com o setor médico para refletir sobre seu compromisso quanto à atenção à saúde das mulheres e, temos dado apoio para que hospitais desenvolvam protocolos de aborto terapêutico. Isso facilitará que os profissionais cumpram a lei de forma padronizada e que ofereçam atenção de qualidade às mulheres. Os médicos também têm um papel na modificação de leis punitivas: hoje eles têm consenso de que é necessário despenalizar o aborto em caso de estupro e em caso de danos ao feto que sejam incompatíveis com a vida. Isto encaminha para uma reforma legal no Peru. Além disso, a campanha pública que criamos: "Conte-nos sua história", tem permitido colocar, diante da opinião pública, a voz de mulheres de carne e osso que demandam esta atenção. Há dois anos, iniciamos uma linha de pesquisa sobre os conservadorismos peruanos e sua influência nas políticas públicas.
CFEMEA - Em sua opinião, o que falta para que as mulheres latino-americanas tenham, de fato, autonomia reprodutiva?
Rossina Guerrero - Esta é uma pergunta difícil de responder, porque há muitos desafios ainda para que as mulheres tenham uma autonomia plena. O primeiro é saber o papel do Estado como protetor dos direitos humanos, com vontade política e de perfil laico (o que implica que o Estado não deve administrar políticas sob preceitos religiosos e não governa para um determinado grupo religioso). As formas de violência prejudicam nossa possibilidade de decidir e nossa dignidade e nos colocam em uma situação de vulnerabilidade extrema. Por isso, creio que a autonomia reprodutiva poderá ser uma realidade maior quando nós mulheres deixarmos de ser consideradas propriedade dos outros e que se atinja a tolerância zero e a erradicação de qualquer forma de violência. Neste campo, temos muito a fazer. É importante também que sexualidade e reprodução se constituam em espaços de exercícios de direitos, e os programas de saúde sexual e reprodutiva contem com insumos e recursos para que profissionais devidamente treinados permitam às mulheres decidir em liberdade. E um campo essencial são as reformas imprescindíveis na Educação, com a geração de novas formas de relacionamento entre homens e mulheres, com relações de respeito e de reconhecimento mútuo. Este é um caminho longo, mas que devemos começar a trilhar o quanto antes.
Para conhecer mais do trabalho da PROMSEX, visite o site www.promsex.org.