Muitas conquistas foram alcançadas em termos legislativos, entretanto sabemos que, na prática, nem tudo está sendo cumprido e implementado.
Por Iáris Ramalho Cortês (integrante do Conselho Deliberativo do Cfemea) e Guacira Oliveira (integrante do Colegiado de Gestão do Cfemea), com colaboração de Jolúzia Batista e Patrícia Rangel (feministas e colaboradoras do Centro Feminista de Estudos e Assessoria - CFEMEA)
Passadas quase 3 décadas de lutas democráticas (desde a Constituinte até aqui) para garantir a igualdade de direitos, podemos dizer que ultrapassamos aquela situação de cidadãs de terceira categoria a que estávamos submetidas. Uma parte muito importante dessas batalhas foi travada no campo legislativo. O CFEMEA fez parte delas!
Um dos principais motivos da criação do Cfemea foi o desejo de acompanhar a elaboração de leis que viessem a regulamentar as conquistas constitucionais de 1988. Nós, as cinco mulheres que fundamos o Cfemea, nos conhecemos no Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), entre os anos de 1985 e 1988, durante a constituinte. Com a mudança de direção do CNDM, tivemos receio de que o processo se estagnasse e tudo que as mulheres conquistaram na Constituição Federal, ficasse apenas como um preceito sem continuidade.
Estava muito forte em nós a emoção vivenciada durante a constituinte, o “lobby do batom”, as caravanas de mulheres, as centenas de cartas, bilhetes, telefonemas e telegramas e faxes reivindicando direitos a serem incluídos na Constituição. O período de 1985 a 1988 foi rico para as mulheres. Nunca havia tido tanta harmonia, solidariedade, congraçamento de mulheres no Brasil. Não sei se durante a luta sufragista a participação foi igual. Com certeza foi muito forte, mas não tão participativa, tão abrangente, em termos numéricos, a participação de todas as classes e estratos sociais e de alcance territorial. Durante a Constituinte foram criados dezenas de grupos de mulheres, nas universidades, nas comunidades, por interesse, por localização, por vontade de estar juntas, de participar. Foi um verdadeiro pulular de associações, com as mulheres se sentindo responsáveis pela elaboração da nova Constituição, donas de seus destinos.
Os movimentos de mulheres e feminista, atuando como sujeito político, tornaram possível que as condições que nós mulheres vivíamos na década de 80, ainda mais desigual e violenta, tanto sob a perspectiva de gênero, quanto racial e étnica, não se sustentasse mais pela sua naturalidade. Ao contrário, as razões da constância destas desigualdades e violências, cada uma por seu lado, foram denunciados e os processos que dão sentido à transformação dessas realidades foram sendo engendrados.
Da militância ao profissionalismo:
Até 1992 nosso trabalho era exclusivamente militante, contando com a participação de mulheres especialistas ou ativistas. Falávamos com alguns parlamentares sobre o andamento de projetos e procurávamos levar a opinião do movimento de mulheres para as discussões no Congresso.
Quando em 1992, conseguimos o primeiro financiamento passamos a trabalhar de forma mais profissional. O Cfemea foi credenciado como entidade do movimento social representativa do movimento de mulheres para acompanhar os trabalhos legislativos junto à Câmara dos Deputados em 1993 e junto ao Senado Federal em 1994.
Saúde da mulher
Em 1984, foi implantado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), cuja comissão de elaboração contou com a participação de duas feministas, a médica Ana Maria Costa e a socióloga Maria da Graça Ohana, que estavam em consonância com os anseios do movimento de mulheres. O programa deixou de ver a saúde da mulher de forma fragmentada, com ênfase na maternidade e aleitamento, e passou a apresentar a proposta de um tratamento integral, desde a adolescência até a velhice. Do PAISM para a Lei do Planejamento Familiar foi uma questão de tempo.
No que se refere ao direito à saúde, em especial sexual e reprodutiva, desde 1994, não temos uma legislação totalmente submissa às regras da Igreja Católica, como era antes da Constituinte: a Lei do Planejamento Familiar prevê que a esterilização cirúrgica é um direito de mulheres e homens, os contraceptivos e as camisinhas são insumos da política pública; a interrupção da gravidez em alguns casos está normatizada, até o Superior Tribunal Federal ouviu vários segmentos da sociedade civil e se pronunciou sobre gravidezes de fetos anencéfalos; entre os procedimentos cirúrgicos que o SUS deve oferecer está a cirurgia para a mudança de sexo. Os acordos e pactos internacionais firmados pelo Brasil, desde então, confirmam essa orientação. Mais recentemente, em 2013, o Consenso de Montevidéu, que emergiu da 1ª Conferência Regional da América Latina e do Caribe sobre População e Desenvolvimento, é um marco relevante dessas lutas feministas e antirracistas.
Mulher trabalhadora
As camponesas, pescadoras, trabalhadoras avulsas conseguiram colocar na legislação sobre a Previdência Social novos direitos para as seguradas especiais, entre os quais destacamos o salário maternidade e a licença gestante. As diaristas e empreendedoras individuais, e todas aquel@s que adotam crianças podem exercer este direito. Ainda em relação à maternidade e às crianças, outro destaque foi a lei que criou o novo FUNDEB - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, em 2007, abrindo perspectivas melhores, mas ainda insuficientes, para o financiamento da Educação Infantil (creches e pré-escolas), de modo a desonerar as mulheres da sobrecarga da dupla jornada.
Não estamos mais totalmente à mercê do mercado, sem proteção social nenhuma para o trabalho das mulheres. Destaque maior de tantos anos de luta para as trabalhadoras domésticas, que conseguiram, com a PEC 72 de 2013, finalmente mudar a nossa Constituição!
A mulher como trabalhadora foi beneficiada após a constituinte, entre outras, pela Lei nº 8.861/94 - de 25/03/94, que garantiu a licença-gestante às trabalhadoras urbanas, rurais e domésticas e o salário-maternidade às pequenas produtoras rurais e às trabalhadoras avulsas. Foi aprovada depois de ampla mobilização da categoria. (Com o veto presidencial ao artigo 1º, que alterava a CLT, a regulamentação da licença-gestante proposta no projeto limitou-se à previdência social).
No mesmo ano tivemos a Lei nº 8.921, concedendo licença à trabalhadora em caso de aborto espontâneo.
Outra lei muito importante para as mulheres trabalhadoras e que foi muito articulada no movimento e pela sua autora, a Deputada Benedita da Silva, foi a Lei nº 9.029/95 - de 13/04/95, que proibiu a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da Relação Jurídica de Trabalho.
Família e direitos civis
Se até o final da década de 80, só se reconhecia e se garantia proteção a um tipo de família, de lá para cá, as questões relacionadas às leis, as decisões judiciais, as políticas e os serviços públicos mudaram muito e já reconhecem a existência de várias formas de família. O reconhecimento da união estável, ainda em 1996, tirou da total desproteção do concubinato milhões de mulheres brasileiras. Na década seguinte, as decisões judiciais relacionadas às famílias homoafetivas avançaram, cada dia mais, para assegurar o direito à herança, sucessão e adoção.
Luta antirracista
Para enfrentar o racismo, que torna ainda mais dura ainda a luta das mulheres por igualdade, todo o debate, a mobilização social e a pressão política em favor das quotas raciais e ações afirmativas foi altamente relevante, evidenciou as injustiças e conquistou acordos internacionais, como o Plano de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo, de 2001, leis e normas inéditas na história do nosso país.
Paridade Já!
E por falar em quotas, a lei eleitoral que estabeleceu as cotas de candidaturas por sexo, se não serviu para que as mulheres pudessem dividir os espaços de poder com os homens, sem dúvida, foi instrumento valioso para desmascarar o caráter patriarcal do sistema político, imune a todo tipo de lei, regra, acordo político relacionado a participação paritária das mulheres nos espaços de poder.
Com relação ao avanço da mulher na política, acompanhamos até 1995 a tramitação do projeto de lei da deputada federal Marta Suplicy que se transformou na Lei 9.100 e que previa uma cota de 20% para mulheres como candidatas nos partidos políticos. Posteriormente a Lei 9.504 elevou esta cota para 25%, para as eleições de 1998, e 30%, a partir das eleições seguintes em eleições proporcionais (Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais) para o sexo minoritário (na prática, para as mulheres).
Mas as cotas só foram cumpridas nas eleições municipais de 2012, quando, pela primeira vez, os partidos respeitaram a lei devido à minirreforma eleitoral de 2009 e às ameaças da Justiça Eleitoral de impugnação de candidaturas masculinas com vistas a manter a proporção 30%-70% exigida por lei (em 2012, tivemos 30,3% de candidatas a todos os cargos, percentual semelhante ao de 2014), mas o número de eleitas permanece irrisório. Por isso os movimentos de mulheres concluíram que só a Reforma do Sistema Político pode superar a exclusão das mulheres nos espaços de poder e garantir a paridade.
Nem putas, nem santas: mulheres!
A área penal foi contemplada com várias legislações, das quais destacamos a Lei nº 8.930/94 - de 06/09/94, que inclui o estupro no rol dos crimes hediondos, a Lei 10.224/2001 que diz ser o assédio sexual um tipo de crime, cria o disque-denúncia, como um instrumento para coibir a violência contra a mulher, pela Lei 10.714/2003 e a exclusão dos termos “mulher honesta”; e “mulher virgem” (Lei 11.106/2005) do nosso Código Penal.
Pelo fim da violência contra as mulheres!
Do ponto de vista da violência contra as mulheres, tivemos sim avanços super relevantes. Desde o reconhecimento na Constituição de que o Estado deveria assegurar proteção contra a violência doméstica até a promulgação da Lei Maria da Penha houve mudanças substantivas sobre a responsabilidade do poder público no enfrentamento da violência contra as mulheres. Uma evidência inequívoca neste sentido são todos os serviços e milhares de servidores públicos, municipais, estaduais e federais, trabalhando em delegacias da mulher, centros integrados de referência para as mulheres, juizados especiais, por força desta Lei.
A maior conquista na área penal foi sem dúvida a promulgação da Lei nº 11.340/2006, de combate à violência doméstica, Lei Maria da Penha. Depois de vários anos de discussão com o movimento de mulheres, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) entrou na articulação e o Executivo apresentou o projeto ao Congresso Nacional. No Congresso, o PL foi objeto de várias audiências públicas em todo o território nacional, com a participação em massa do movimento de mulheres.
Enfrentamento aos retrocessos
Com estes exemplos de legislações conquistadas, temos para acrescentar outras ações que foram importantes para as mulheres, e que impediram o retrocesso de conquistas. Uma das mais antigas é a batalha quase campal que vez por outra temos que enfrentar para impedir o termo “direito à vida a partir da concepção”, no texto constitucional. Em 1995, travamos uma luta contra a aprovação da PEC 25/1995 que garantia a “inviolabilidade do direito à vida”, do “arqui-inimigo das mulheres”, Dep. Severino Cavalcanti - PFL/PE.
No ano passado, a presidenta Dilma Roussef sancionou, sem veto, e a contragosto da bancada cristã da Câmara dos deputados, o PL 12.843/13 que garante atendimento às vítimas de violência sexual, no Sistema Único de Saúde (SUS), com especial atenção para a administração da pílula do dia seguinte e para o acesso à informação sobre a decisão do aborto legal para gravidez resultante de estupro. O mais preocupante é que existem pelo menos três PLs que pedem a revogação desta lei.
Uma perda amarga para nossa luta em 2013 foi, sem dúvida, a aprovação do PL Nº 478/2007, que institui o “Estatuto do Nascituro”, em que os conservadores reposicionaram a “defesa da vida”.
Sabemos que o perigo do retrocesso ainda hoje paira no ar, como um possível “tufão” sobre o sonho de ver a legislação sobre o aborto ser mais flexível para as mulheres. Neste sentido já tivemos avanços, não em termos legislativos, mas por Decisão do Supremo Tribunal Federal - ADPF 54 QO / DF - Distrito Federal, que julgou no sentido de não ser considerado crime a interrupção da gestação de feto anencefálico.
Quem esteve na luta, como o CFEMEA, não se ilude, sabe que a conquista de direitos não é processo que tem se desenvolvido de maneira linear e progressiva. Pelo contrário, as ameaças aos direitos das mulheres, foram e continuam sendo ferozes e, agora, ainda mais ameaçadoras. Os interesses do capital prevaleceram na Reforma da Previdência e, entre outros resultados negativos, aprovaram o fator previdenciário, que atingiu as mulheres trabalhadoras de maneira absolutamente injusta.
O crescimento do conservadorismo religioso no Parlamento é altamente reacionário, autoritário. No campo legal, o exemplo mais nefasto desse processo constante de arruinamento da fronteira entre Estado e Religião se evidencia na aprovação do Acordo Brasil Vaticano, em 2010. É fato que o campo anti-direitos avança no Legislativo para derrubar essa fronteira, com a o Estatuto das Religiões, a Bolsa Estupro, a Cura Gay e várias iniciativas para a maior criminalização das mulheres pela prática do aborto, entre tantas outras desse naipe.
Enfim, se tanto construímos para a igualdade e para a democratização da democracia brasileira, mais ainda há por fazer, resistir, conquistar para que os direitos humanos das mulheres, a igualdade, a justiça, a solidariedade, a laicidade do Estado, prevaleçam!
Como vemos, muitas conquistas foram alcançadas em termos legislativos, entretanto sabemos que, na prática, nem a metade está sendo cumprida e implementada. Assim, o que o movimento de mulheres precisa urgentemente é levar o que está escrito nas leis, para a vida das mulheres. O Cfemea, como integrante desta articulação de mulheres, tem o dever de participar deste novo desafio, agora que alcançou a idade adulta e possui instrumentos capazes de divulgar o que ajudou a conquistar.