Por Guacira Oliveira
Socióloga, integrante do Colegiado de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e da Coletiva Dinamizadora da Universidade Livre Feminista

O movimento de mulheres e feminista, para mim, como para muitas mulheres, ofereceu e oferece uma experiência libertadora, emancipatória, um lugar de sujeito no mundo.

No movimento, os vínculos que construímos entre nós têm me ajudado (e imagino, que a outras mulheres também) a enfrentar a angústia, a insegurança e a impotência de ser mulher neste mundo cão, onde a regra é a sujeição das mulheres aos homens, d@s negr@s @os branc@s, do nosso trabalho à exploração do capital, do saber à ciência, da sexualidade à ordem heteronormativa, da emoção à razão, do corpo à mente, da natureza ao lucro...

Viver nessa ordem é impossível, insuportável. E subvertê-la não é fácil, todas nós que nos dedicamos a esse objetivo sabemos disso muito bem!

O laço que me liga ao movimento é forte e me sustenta, me deixa mais segura de mim mesma e assim, sigo adiante, tratando dessa subversão: ao mesmo tempo, me transformar e transformar o mundo. Buscando viver melhor, ser melhor, experimentando desde já outras possibilidades de me relacionar com as pessoas ao meu redor, de reconhecê-las e ser por elas reconhecida, de respeitar e proteger os bens comuns da humanidade, de viver no planeta e construir, agora, um futuro onde tod@s possamos ter futuro.

Acho que deveria ser uma questão de princípio da nossa organização em movimentos, que cada ativista, cada militante pudesse encontrar nestes espaços uma fonte de energia para criar, agir e ter iniciativa para mudar, viver melhor e ser livre. Penso que esta é também uma questão estratégica, afinal, é da força de cada uma e de todas juntas que as lutas se nutrem. E, dialeticamente, é nos coletivos que cada uma de nós se alimenta para superar a imensa fragilidade que a individualidade, desprovida de vínculos, nos imporia.

Nos nossos coletivos, nós feministas desenvolvemos um jeito de ser militante, ativista sobre o qual precisamos refletir, porque várias dimensões das nossas vidas foram sendo negligenciadas pelo nosso modo de agir e fazer política.

Nós falamos da ética do cuidado, de que o pessoal é político, mas os nossos movimentos ainda precisam construir essa via de mão dupla do pessoal para o coletivo e vice-versa. Quando damos tempo e espaço nos nossos grupos para cuidarmos umas das outras?, e cada uma de si própria?, que tempo dedicamos ao autocuidado e ao cuidado entre ativistas? Sem isso, em alguma medida, nos relegamos ao lugar que a ordem patriarcal e racista nos impôs: de existir em função dos outros, para cuidar de outros, inferior aos outros, indigna de receber cuidados (seja autocuidado ou cuidado entre iguais), porque trata-se de privilégio racista e obrigação das mulheres dos grupos racializados, que têm de sujeitar-se às tarefas desprezíveis e ignóbeis de cuidar de brancos.

Sabemos que a ordem patriarcal e racista exige das mulheres que sejamos cuidadoras, por dever ou imposição. Nesta ordem, não há autocuidado, se não for como mercadoria. Nem há reciprocidade no cuidado.

Cuidar de si mesma, cuidarmos umas das outras, deixarmo-nos ser cuidadas, retribuir o cuidado recebido; compartilhar as nossas emoções, os nossos achados na luta feminista e antirracista, as nossas dores e os caminhos para curá-las; valorizar o nosso saber e as nossas capacidades é algo fora da ordem. Diz respeito a nossa luta por autonomia pessoal e para garantir a nossa auto-organizaçao. E se sustenta em princípios éticos e políticos que nos são caríssimos, como a horizontalidade, a solidariedade e a reciprocidade.

No fim das contas, trata-se de realizarmos, nós mesmas, nos espaços que nós mesmas criamos, uma experiência que nos transforma e que pode transformar o mundo.


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