Quase lá: É muita gente

Silvia Gomide
Jornalista

Puxe pela memória e diga. Depois do “Fora Collor”, em 1992, quantos movimentos populares levaram mais de 100 mil pessoas às ruas nos últimos anos? Respondendo a pergunta alguns se lembram do enterro do Ayrton Senna, um outro diz a comemoração pela vitória na Copa do Mundo, em 1994. Mas a maioria vai ter muita dificuldade para lembrar de um motivo que tenha posto tanta gente em um mesmo lugar. Isso significa que no último dia 25 de junho São Paulo foi palco de uma das maiores manifestações populares da história recente do Brasil: a passeata pelo Orgulho Gay. Em números oficiais, participaram mais de 100 mil pessoas. A organização fala em 120 mil e há quem diga 160 mil pessoas.

A força dessa gente toda na rua teve reflexos em todo o Brasil. A passeata foi capa e manchete dos principais jornais no dia seguinte, em reportagens estampadas com bandeira do arco-íris, que representa a liberdade e diversidade sexual. O dia do Orgulho Gay é mundial e comemorado no dia 28 de junho (que caiu numa quarta-feira). Marca o aniversário da primeira grande revolta pública da comunidade homossexual contra ação da polícia nova-iorquina no bar gay Stonewall. Hoje, numa praça em frente ao bar existem duas estátuas, uma de um casal de homens e outra de um casal de mulheres.

Por falar em Estados Unidos, muitas pessoas no Brasil ainda estranham o uso do termo gay para mulheres homossexuais, preferindo a palavra lésbica. Mas na terra do Tio Sam, onde o termo surgiu, é usado indistintamente para homens e mulheres que têm preferências homoeróticas. Gay significa alegre.

E tanta gente celebrando a alegria nas ruas em São Paulo representa um inegável e muito visível sinal de mudança. O discurso lamentável e depressivo feito por um militante de Brasília, onde uma passeata reuniu cerca de 500 pessoas, está cada dia mais anacrônico. São Paulo e sua invejável “rave” à luz do dia espelha como, cada vez mais, o armário está sendo trocado por ruas.

Esse caminho pode ser visto de várias formas. Diversas leis defendendo os direitos dos homossexuais estão sendo discutidas em todas as esferas do Legislativo. A mais importante é o projeto de união civil, de autoria da ex-deputada Marta Suplicy. O projeto legaliza as relações práticas da vida comum de um casal de pessoas do mesmo sexo: entre outras iniciativas declarar imposto de renda juntos, associar o companheiro (a) ao plano de saúde, ter direito a herança ou de visitar a pessoa na UTI. A matéria espera votação na Câmara dos Deputados, onde está emperrada por falta de vontade política. Lembre-se disso nas próximas eleições.

O Conselho Federal de Psicologia baixou em março de 1999 uma resolução orientando os profissionais a agir com clientes homossexuais. “Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão, notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade. Deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”,diz o documento, entre outras determinações.

Bares, boates, festas e feiras GLS (de gays, lésbicas e simpatizantes) são sucesso e têm deixado muita gente com o bolso cheio da grana. O cinema também deixa bem claro os ventos novos que andam soprando na sociedade. Se antes os títulos que narravam romances entre casais só de mulheres ou só de homens eram baixo astral, cheios de culpa e terminavam, sem escapatória, com pelo menos um tenebroso enterro, hoje existem diversos filmes, até romances água com açúcar, com final feliz, muito amor e sexo envolvendo casais de gays.

São títulos como Quando A Noite Cai, Essa Estranha Atração, O Beijo Hollywoodiano de Billy, Par Perfeito e, mais recentemente Desejo Proibido, em que um dos casais é interpretado por Sharon Stone e Ellen Degeneres. Apesar do infeliz título dado na versão brasileira – o povo que titula imagina que filmes com temas gays precisam conter as palavras estranha e proibido, essa gente tem que se atualizar – a produção da HBO merece ser conferida. O título original, se estas paredes falassem, reflete melhor a trama: são histórias de três casais lésbicos que viveram numa mesma casa em décadas diferentes, anos 60, 70 e no ano 2000.

O filme tanto pode retratar as mudanças da relação da sociedade com casais gays como também pode ser visto como a narração de muitas histórias de vidas homossexuais. Primeiro se vive no armário, oprimido e humilhado. A luta pelo direito a uma identidade diferente leva à uma vida tranqüila, como um copo de chocolate quente.

O dia do Orgulho Gay levou para a luz do dia milhares de pessoas que são gays, heteros, simpatizantes ou apenas queriam se divertir com boa música techno. O objetivo do movimento é a integração entre gays e toda a sociedade. Cada qual com seus defeitos, qualidades. Todos humanos e diferentes entre si. Enfim, no dia 28 de junho, a palavra de ordem é respeito e tolerância. E que nos outros 364 dias do ano o slogan também seja posto em prática.


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