Maria Laura Sales Pinheiro
Professora Universitária, ex-deputada federal pelo Distrito Federal
A análise sobre os gastos orçamentários federais com a saúde da mulher no período 1995/1999, feita por Maria Laura Sales Pinheiro, traz como pano de fundo o processo brasileiro de redemocratização iniciado no final da década de 70. O campo da saúde pública sobressai, neste processo, com a ampla movimentação política pela reforma do sistema de saúde que envolveu setores profissionais, acadêmicos e organizações sociais e com a atuação inovadora do movimento de mulheres pela saúde e direitos reprodutivos.
Resgatando a trajetória dos anos 60 e 70, quando se expandem, no Brasil, programas não governamentais de controle da natalidade, revela-se uma dupla omissão do Estado: diante das questões próprias do aumento populacional e diante da bem sucedida intervenção de organismos controlistas no campo da saúde reprodutiva. Tanto que há, entre as décadas de 70 e 80, um declínio da ordem de 25% nas taxas de fecundidade, chegando a 30% em algumas regiões. Dados do IBGE/PNDS de 1996 mostram que, das mulheres entre 15 e 49 anos de idade e que vivem em união, 40,1% estavam esterilizadas. Já no início da década de 80, grupos feministas, ocupando as brechas abertas à participação política, ganharam espaço no debate, chamando atenção para a responsabilidade do Estado quanto à oferta de métodos anticoncepcionais dentro de uma política de planejamento familiar, com atenção à questão do aborto e aos altos índices de mortalidade materna.
O discurso avança
Frutos das mobilizações sociais em ebulição neste período foram a instalação, no Congresso Nacional, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre População e Demografia (1982); a apresentação de uma proposta de descriminalização do aborto - recusada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados - (1983); o lançamento do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher/ PAISM pelo Ministério da Saúde (1984); e a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde com a participação de cerca de 5.000 pessoas (1986). O relatório desta Conferência contempla a Reforma Sanitária, proposta por profissionais de saúde e professores, cuja visão crítica orientou a concepção do Sistema Único de Saúde (SUS). Dois anos depois, este sistema foi legitimado pela nova Constituição (1988), através do artigo 196, que estabelece ser a saúde um direito de todos e dever do Estado, o qual deve garantir acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O SUS incorpora diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade, e é financiado com recursos da Seguridade Social, da União, dos Estados, do DF e dos municípios, além de outras fontes.
A Constituição de 1988, assim como o PAISM, amplia direitos para as mulheres (e homens), de todas as idades, e definem os deveres do Estado perante a reprodução, pressupondo uma forte intervenção do setor público em áreas sociais. O parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição determina: "o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". Outra conquista importante para a saúde da mulher e da criança foi a "licença gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias" (inciso XVIII do artigo 7º, da Constituição).
Na contramão dessa História
Entretanto, o rumo da história traz entraves estruturais ao desenvolvimento dessas políticas. As premissas sobre as quais se basearam a Constituição vão na contramão da política de ajuste estrutural, ou de redução da intervenção do Estado, que se estabelece logo ao primeiro mandato presidencial após sua promulgação. O Presidente eleito, Collor de Melo, propõe imediatamente uma revisão da Constituição e inicia um processo de privatizações, avançando iniciativas de terceirização do serviço público. Com seu impeachment e a transição para o segundo Governo eleito, o de Fernando Henrique Cardoso (FHC/1994), não há mudança nesta lógica. Assumindo como metas centrais a estabilização da moeda e a promoção do ajuste das contas públicas, a equipe de FHC dinamiza uma política de reformas constitucionais e intensifica as iniciativas de privatização, assumindo compromissos internos e externos que entram em contradição com a defesa de políticas sociais.
Por outro lado...
As Conferências das Nações Unidas reforçam compromissos sociais. Dentro do ciclo de eventos da ONU inaugurado com a Eco’92, o Governo brasileiro teve um papel particularmente importante nas conferências do Cairo (1994) e de Beijing (1995) onde suas delegações lideraram, com posições avançadas, as discussões no campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. Na bagagem de volta vieram compromissos e metas a cumprir, como a de reduzir a mortalidade materna em pelo menos 50% dos níveis de 1990 até o ano 2000 e, de novo, 50% até o ano 2015; e assegurar que o sistema de saúde ofereça os serviços necessários, tomando as medidas oportunas para tornar acessíveis, tão cedo quanto possível e antes de 2015, os serviços de saúde reprodutiva através da atenção primária, a todas as pessoas em idade de receber esse atendimento.
Enquanto isso... no Congresso Nacional
No ano seguinte à Conferência de Beijing, formou-se na Câmara dos Deputados uma Comissão Especial, formada por integrantes da bancada feminina, para estudar medidas legislativas necessárias à implementação das decisões da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. O relatório dessa Comissão, concluído em 1997, chama atenção para as funções fiscalizatórias, constitucionalmente reconhecidas, do Congresso Nacional, que deve zelar pela efetiva aplicação das leis.
No período subseqüente, diversos projetos na área da saúde e direitos sexuais e reprodutivos foram apresentados, e os que já estavam em tramitação retornaram à pauta com maior vigor. Maria Laura ressalta a importância, tanto da Bancada Feminina, como de parlamentares homens comprometidos e da militância feminista, na defesa desses projetos, e no enfrentamento com os setores conservadores, resistentes à sua aprovação. Há uma intensificação das discussões, sendo as principais polêmicas em torno da questão do aborto e do planejamento familiar. O Projeto de Lei 20/91, por exemplo, que dispõe sobre a obrigatoriedade de atendimento, pelo SUS, dos casos de aborto previstos no Código Penal (quando a gravidez resulta de estupro ou traz risco de vida para a mulher), aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, ainda não alcançou a votação conclusiva, embora esta seja uma medida que beneficiará, principalmente, as mulheres mais pobres, que se utilizam da rede pública de saúde.
Outra matéria a merecer destaque é a Lei do Planejamento Familiar (nº 9263/96), que regulamenta o já mencionado §7º do artigo 226 da Constituição de 1988. Aprovada em janeiro de 1996 após 5 anos de idas e vindas, esta Lei ainda enfrentou um veto presidencial referente à esterilização feminina voluntária, veto este derrubado um ano e meio depois. A aprovação desta Lei foi um avanço importante. Ela regulamenta um direito constitucional definindo ações que, uma vez implantadas, constituirão instrumentos importantes para a promoção da saúde reprodutiva.
Outro destaque do trabalho parlamentar foi o requerimento, em 1996, de criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a incidência da mortalidade materna no Brasil. A CPI foi instalada em abril de 2000, e os seus resultados poderão ser um instrumento valioso para impulsionar a construção de um quadro preciso desta realidade, possibilitando um melhor delineamento de orientações para políticas públicas neste campo.
Poder Executivo Federal tenta cumprir compromissos
No início de seu mandato o Governo FHC protagonizou certa articulação para dar sustentação à perspectiva da saúde reprodutiva. Em março de 1994 foi instituída a data de 28 de maio como Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. Os resultados das Conferências de Cairo e Beijing foram acompanhados pelo reforço então conferido ao Conselho Nacional de Saúde, pela revitalização da Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher e pela criação da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (ambas em 1996). São todos mecanismos de suporte técnico e controle social, dos quais participam representantes da sociedade civil, inclusive movimentos sociais.
A coordenação do PAISM foi também reforçada técnica e politicamente. Protocolos de cooperação, inclusive visando ações de planejamento familiar, foram celebrados entre o Ministério da Saúde e Ministério da Justiça, por intermédio do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Ainda em 1996, o Ministério da Saúde assinou decretos e normas, realizou estudos e tomou diversas iniciativas que demonstraram a prioridade conferida à questão da saúde da mulher. Em 1997, definido como Ano da Saúde, o Plano de Governo reafirmou a meta de reduzir o coeficiente de mortalidade materna através da assistência ao pré-natal, parto institucional e assistência pós-parto e o Ministério da Saúde indicou medidas de combate às doenças sexualmente transmissíveis e AIDS.
Em 1998, já no segundo mandato FHC, o Ministro José Serra procurou dar sinalização de fortalecimento de políticas referentes à saúde reprodutiva, com destaque para o papel normatizador do Ministério da Saúde e levando em consideração o já avançado processo de descentralização. A equipe da Área Técnica de Saúde da Mulher elaborou a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Doméstica e Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que inclui o atendimento público aos casos de abortamento previstos por lei (o que gerou nova reação na Câmara dos Deputados por meio de projeto de decreto legislativo com o objetivo de tornar sem efeito esta iniciativa); elaborou também a Norma Técnica para o Atendimento da Gestação de Alto Risco e a normatização do atendimento ao Planejamento Familiar.
O que falta então?
Como contraponto ao avanço presente nos "discursos", está a defasagem entre estes e a prática, que emana dos dados da realidade. No caso da saúde materna no Brasil estes dados são contundentes. Maria Laura lança mão de suas referências bibliográficas para traçar este panorama.
O que falta, segundo a autora, "é vontade política para priorizar os problemas que afligem a maioria da população e isso se revela no caso específico da saúde da mulher, quando observamos, de forma mais cautelosa, o Orçamento da União destinado à efetivação de políticas públicas que, na teoria, se destinam a eliminar ou mesmo minimizar os problemas detectados".
Mortalidade materna
Estima-se que a cada duas horas uma mulher morre por complicações na gravidez, parto ou dentro do período de 42 dias após o término da gestação. Tecnicamente estas são conhecidas como "mortes maternas". Mas isto são estimativas, pois no Brasil as mortes maternas nem sempre são notificadas como tal*. O dado oficial do Ministério da Saúde apresenta a seguinte progressão da taxa de mortalidade entre 1980 e 1987.
(número de mortes de mulheres para cada 100 mil crianças nascidas vivas) | |||||
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(1) Dados do Ministério da Saúde sem fator de correção.
(*) Há estudos que admitem a possibilidade de que a subnotificação reduza à metade o número verdadeiro de mortes maternas (Tanaka, 1999).
(**) Nos anos mais recentes houve melhora no sistema de registro, o que talvez explique o aumento do índice no ano de 1997.
Dado publicado no jornal do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), em maio de 1999, mostra que trezentas mil crianças entre zero e 9 anos estão órfãs de mãe, mortas em decorrência do parto ou pós-parto. É um número assustador, sobretudo levando-se em conta que gravidez não é doença e que essas mortes são, na maioria das vezes, evitáveis, desde que exista o acompanhamento médico, exames e tratamentos adequados. Entretanto, na área urbana, 14% das gestantes não tiveram acompanhamento pré-natal em 1996, embora 90% dos partos tenham sido realizados no SUS. Na área rural os índices são diferenciados, para pior. Houve na última década um crescimento da assistência pré-natal da ordem de 16%, mas este crescimento está aquém do mínimo adequado (6 consultas por gravidez). No ano de 1997 não se atingiu 2 consultas, e em 1998 este número não ultrapassou 3 consultas por gravidez. É preciso lembrar que esta é a média e que, possivelmente, em alguns estados, muitas gestantes não fizeram sequer 1 consulta.
Parto cirúrgico (cesariana)
Este é um fator de risco que aumenta a probabilidade de ocorrência da morte materna. No Brasil estabeleceu-se uma verdadeira ‘cultura da cesariana’ e os números são altos, seja no SUS ou no atendimento privado. Dados de 1992 indicam que 36% dos partos realizados no SUS são cesáreas. Em 1994 este percentual cai para 14%, sendo o padrão internacional de 10% (dados do Ministério da Saúde).
Abortamento inseguro
Estima-se que 1.400.000 abortos clandestinos são realizados por ano no país. O dado oficial é de que as internações por sequelas de abortamentos provocados são a 5ª causa de internação no SUS.
Meninas e jovens, uma realidade particular***
A taxa de fecundidade estimada das jovens brasileiras entre 15 e 19 anos teve um crescimento de 26% entre 1970 e 1991 (Censo Demográfico IBGE/ FNUAP Brasil). Houve, portanto, um movimento inverso à taxa de fecundidade geral da população, que registra uma redução sistemática e significativa. Cerca de 14% das mulheres menores de 15 anos entrevistadas na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) de 1996 já tinham pelo menos um filho e 18% das adolescentes brasileiras já tiveram no mínimo um filho ou estão grávidas, sendo as áreas rurais as que apresentam maior incidência: de 24 e 17%, respectivamente. No meio urbano, a mesma pesquisa revela que 54,4% das meninas entre 15 e 19 anos, sem escolarização, já haviam ficado grávidas.
A porta de entrada das jovens brasileiras no SUS é o parto que, somado à gravidez e pós-parto, constituem a primeira causa de internação de meninas de 15 a 19 anos (MS/ 1996). Para as meninas entre 10 e 14 anos, os dados do SUS apontam, no período de 1993 a 1997, um aumento de 20% no total de partos. Na faixa etária de 10 a 19, em 1997, de um total de 2.718.265 partos 868.969 foram cesáreas, atingindo 32%. Em 1998 o total de partos de meninas e jovens entre 10 e 19 anos realizados no SUS foi de 698.439, incluindo cesáreas.
Pesquisa do Programa Saúde do Adolescente do Ministério da Saúde (1996) aponta que o número de adolescentes que passam pelos serviços do SUS para corrigir seqüelas de aborto mal feito cresce a cada ano. De 1993 a 1997, a proporção de curetagens feitas pelo SUS em jovens cresceu de 19% para 22%. Para o ano de 1996 estima-se 241.392 casos de abortamentos em jovens de 10 a 19. Em 1998, na faixa etária entre 10 e 19 anos, registraram-se 50.668 curetagens (DATASUS/98/FNUAP Brasil).
Em 1995, 13% dos óbitos de mulheres entre 15 e 19 anos e 22% de 20 a 24 anos tiveram como registro causas que caracterizam morte materna. O aborto representou 16% das mortes maternas de mulheres de 15 a 24 anos nas regiões mais pobres do país (CNPD/1997). De acordo com o DHS/1996, a pílula anticoncepcional é utilizada por 7,9% das jovens entre 15 e 24 e, nesta faixa, apenas 14% estavam utilizando algum contraceptivo na ocasião da pesquisa; para a faixa entre 20 e 24 anos os números são um pouco melhores, mas ainda assim são preocupantes, pois apenas 42% delas usavam contraceptivos e apenas 23,8% utilizavam a pílula (FNUAP/1996).
A não proteção nas relações sexuais aponta para um risco alto de exposição às doenças sexualmente transmissíveis. A incidência de AIDS entre pessoas jovens vem sendo destacada, em diversos estudos, com um crescimento vertiginoso nas mulheres, sendo o principal meio de transmissão as relações heterossexuais. Em 1986, para 16 jovens do sexo masculino infectados, constatava-se uma mulher infectada. Impressiona que 12 anos depois, os dados mostrem que esta proporção, na faixa etária de 15 a 24 anos, passa a ser de 1/1, ou seja, para cada jovem rapaz infectado existe uma jovem infectada (RNDH em HIV-AIDS/1998). As doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV/AIDS, constituem a principal causa de doenças no aparelho reprodutivo, ameaçando a fertilidade, a saúde e a própria vida das jovens brasileiras, tendo conseqüências também sobre os recém-nascidos, pois são causa de partos prematuros (AGI/1998).
(***) Dados extraídos do Dossiê Adolescentes (Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos).