Quase lá: XI Conferência Nacional de Saúde: Pé quente para as mulheres

Ana Maria Costa
Feminista, Coordenadora do Núcleo de Estudos de Saúde Pública; integrante do NUSS (Núcleo de Saúde e Sexualidade) de Brasília e Coordenadora do GT- Gênero e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.

Há muito tempo existe quase um consenso de que o Sistema Único de Saúde-SUS, projeto de organização da assistência à saúde dos brasileiros, concebido e conquistado pelo nosso processo de Reforma Sanitária, somente se consolidará pelo fortalecimento do seu controle pela sociedade. Esta XI Conferência realizada no último dezembro, anima bastante os que partilham desta opinião. A amplitude e profundidade do debate e os avanços das propostas do seu relatório final, evidenciam um confortável grau de maturidade na luta pela saúde como direito de cidadania reiterando o papel do Estado no provimento dos serviços assistenciais.

Temas relacionados à legitimidade e representatividade dos conselheiros de saúde foram sobejamente debatidos gerando importantes indicações como o impedimento de profissionais de saúde atuarem como representantes dos usuários nos conselhos e a queda da prerrogativa dos secretários de saúde presidirem os respectivos conselhos citando apenas dois exemplos destes avanços. Se contabilizarmos como positivo estes resultados para o plano mais geral do SUS, para as questões mais específicas dosdiversos movimentos sociais com suas reivindicações e demandas particulares em saúde, não foi diferente. Recomendações para a reforma psiquiátrica, atendimentos às singularidades da população negra, idosos, indígenas surgem como desafios para que o SUS se consolide como sistema democrático e eficiente, em substituição à sua redução a mero fornecedor de cestas básicas de procedimentos padronizados calçando, falsamente, a argumentação da política de equidade. E para nós mulheres os resultados desta Conferência nos afirmam que entramos com passos firmes no novo milênio!

Enquanto movimento social temos que celebrar a maturidade de nossa luta pela saúde, expressa na ação organizada da nossa Rede Saúde que reconheceu o espaço político da Conferência comparecendo de forma competente e organizada. Esta estratégia já vinha sendo adotada pela Rede mas, desta vez, os resultados são mais evidentes. O volume e a qualidade das recomendações destinadas as especificidades das mulheres no SUS, encontraram adesão de outros movimentos sociais que, não somente incorporaram as nossas demandas mas, ferrenhamente, as defenderam. Ponto pra nós! Saímos de nossos redutos e guetos e construímos um debate pela justiça e equidade de gênero como parte desta complexidade que é a saúde.

Temos que nos apropriar da importância histórica do movimento feminista na sustentação do debate pela integralidade da assistência, pautado no conceito ampliado de saúde como consta na Política de Assistência Integral do PAISM. Mas a Conferência mostra que o PAISM, hoje e definitivamente, é uma reivindicação do movimento de saúde, em todos os seus seguimentos. Estão lá aprovados no Relatório da Conferência a retomada das bases conceituais e políticas da integralidade da assistência à mulher exigindo medidas eficientes no combate a mortalidade materna, controle do câncer cérvico uterino e a obrigatoriedade de atendimento, pelo SUS, dos casos de interrupção da gravidez nas situações previstas na Lei.

Mas sem dúvida, nosso júbilo nesta Conferência refere-se a aprovação da descriminalização do aborto entendida nesse âmbito, como uma situação que agrava as condições de saúde das mulheres. Não podemos esquecer do acirramento deste debate nas outras conferências de onde sempre saímos derrotadas pela virulenta e barulhenta ação da Igreja Católica. Desta vez não foi assim. E isto se deu porque não fomos as únicas defensoras da proposta e talvez nem as mais combativas. Nosso mérito não se restringe à nossa competente articulação política na plenária da Conferência mas, especialmente, à pertinência e profundidade do debate que, ao longo destes anos travamos na sociedade pela autonomia das mulheres sobre o seu corpo e na defesa da descriminalização do aborto. Esse debate ampliou adesões. Por isso, negros, sindicalistas, usuários e tantos outros movimentos sociais presentes à Conferência clamaram pelas mulheres, por nossa saúde, nossa autonomia e cidadania. E entramos com o pé quente no novo milênio!


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