Uma carta para o março das lutas das mulheres
Por Gabriela Fidelis*
Em águas de março. Hoje, 17 de março de 2024 fui acordada pelos meus ancestrais. A hora do dia já estava do sol do meio da manhã e o tempo marcava o agora. Levanta, hoje é nosso dia!
Nos espaços dos dias conhecidos como final de semana, o domingo vem com sol forte e brilhante, um calor arretado. O corpo fica meio mole e lento para processar o dia e se dar o direito de ir devagar para degustar as horas, os espaços, o dia. Mas, hoje é aquele dia da velocidade da paciência. E o que seria isso?
Foram tempos e tempos olhando para o mesmo lugar e vendo tudo sufocado, amontoado, sem luminosidade e desordenado. Tudo crescendo, se esparramando com as chuvas, águas de marés altas, natureza e vida que segue acontecendo. Contudo, precisava de cuidado. Tudo era bonito e estava bem, mas precisava de cuidado. A certeza racional estava presente, há tempos que aquele lugar precisava de cuidado. E tudo era bonito e estava bem. Parado!
O corpo ao se levantar, agradecer e se alimentar já sabia o que tinha que fazer: atender ao chamado. Foi rápido e tudo já começou a acontecer, tudo que se precisa estava ali à disposição da vontade de realização. O tempo, o caminho e o chão-território pedem passagem. Movimento!
Com as ferramentas em mãos, a conversa não parava de acontecer na cabeça. Gente, eu não posso fazer isso hoje. Organizei as atividades da casa ontem, de limpeza, abastecimento de alimentos, aquele rodejão de feira e mercado para hoje, domingo pela manhã concentrar e estar em paz para fazer diversas leituras, tempo para lazer, prazer e escritas afetivas. Eu preciso escrever. Escrever? Qual sua necessidade? Qual seu limite? Tudo sufocado, amontoado, sem luminosidade e desordenado. Tudo crescendo, se esparramando com as chuvas, águas de março, natureza e vida que seguem acontecendo. Chegou tempo e precisa de cuidado.
E aquele que é certeiro me acertou, o caçador respondeu. E aquele, o vencedor das guerras e demandas me indagou, vai soltar suas ferramentas? Como vais vencer a guerra? O corpo tremeu. E aquele, dono das plantas e da cura, avisou; lembre de cuidar de quem está pedindo para nascer e já nascendo. E as mais velhas estão reclamando do descaso, querem mudanças, nova terra e lugar. Onde você habita? Eu sei que de onde você vem têm te sacudido os dias com memórias, recontando histórias e te buscando. É não podemos esquecer do lugar em que se nasce, onde enterraram o umbigo, onde o vento soprou dentro do corpo e colocou esse vento-vida, corpo no mundo, a te levar. Quer curar agora para abrir e movimentar caminho? Pensando novamente: Eita que sol da lasqueira, calor medonho. E eu vou aguentar? Meus ancestrais me responderam: Você está pronta! Lembra da paciência? É isso, foi o tempo passando, seu olhar, sua consciência, vontade de transformar. Vontade de encontro ancestral e chegamos nesse hoje, é dia de cuidar.
E tudo já estava ali acontecendo e se transformando. Caminhos guiados e nem precisa pensar muito para realizar. O tempo foi se abrindo ao meio e nesse espaço estava o chão firme para apoiar os pés, teve o respiro do vento que circulou por baixo das espadas e encheu os pulmões. Nesse momento dos cortes e de arrancar pela raiz os excessos, os olhos viram as miudezas belas, esverdeadas e macias como veludo vindo da terra. O ar soltou dos pulmões, expirou a vida para nascer. É preciso coragem para romper a camuflagem do belo e do tudo bem comum, “dessufocar” o cotidiano que sempre diz que é de hoje para amanhã e nunca hoje para agora, vida e não apenas mundo!
O mundo precisa caber na vida que nasce, respira e precisa de tempo, espaço e cuidado para si e para viver entre nós, coletividade respirante. Os lugares foram nascendo, foram suor e lágrimas, sorrisos para a satisfação de conseguir escolher e dizer sim sem estar para morrer, sem ter uma circunstância voraz a empurrar para ação reativa. Não! É difícil dizer não e difícil dizer sim. Hoje foi um não para o tempo de moer gente, sonhos e coragens e sim para o tempo conectado com a vida, o corpo e seu ritmo natural.
Corpo território de cuidado ancestral. Cuidado antes de tudo que você possa pensar e sentir, é ancestral. O cuidado nutre cada corpo para sustentar a si e aos seus mais velhos, seus mais novos e aos seus iguais, em comunidade. O cuidado coletivo armazena a força para mover as estruturas das visões de mundos, necessárias para enxergar o nascer e o morrer como ciclos da vida. Existir e viver para deslumbrar a construção do agora presente, respirando e honrando os ancestrais. Batendo cabeça, como se diz: Kolofé.
São novos espaços a nascer. Territórios de cuidado, luta e sustentação da vida. A porta sempre esteve ali, a resistência também, o caminho que é a própria vida sempre existiu e a sobrevivência também, as ferramentas são diversas e permanecem em nossas mãos. Porque assim, nossos ancestrais existiram e hoje permanecem dentro de nós dizendo: levanta hoje é nosso dia!
As mais velhas descansam e gozam a vida por novas terras. E tem um ar fresco que são as mais novas respirando juntas para crescer. As mais novas nos dizem: esse território constrói minha identidade. Olhando para aquelas que mudaram de lugar e são sempre faróis pelos caminhos nossos. Harmonizou-se o dia, o tempo e o chão território para o caminho de movimento e transformações reais, de nós para nós vivermos. Agora, tudo cheira a bete branca, água de alevante, alfazema e uma planta que dizem afastar os corações que não querem mais amar. As espadas com raiz estão firmes no território, belas em diversos tons de verde respiram ares abertos e bem amoladas, vencedora de seus caminhos.
*Gabriela Fidelis é poeta, é membra do CFEMEA, faz parte da Rede de Tecelãs do Cuidado e é ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras.
*As fotos que ilustram esse texto também foram feitas por Gabriela Fidelis.