Aprovação do requerimento de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 é injustificável e revela fragilidades da democracia em garantir direitos das mulheres.
A hashtag #CriançaNãoÉMãe tem movimentado as redes nos últimos dias, com o envolvimento de personalidades públicas, celebridades e páginas de fãs-clubes. Não é a primeira vez que ela surge, as ameaças mais críticas no Congresso aparecem de tempos em tempos, uma obsessão da extrema direita, desde o atual ataque ao direito ao aborto previsto em lei nos casos de estupro, até outras propostas como o Estatuto do Nascituro, o PL Bolsa Estupro. Mas o que há por trás dessa movimentação de agora?
A campanha foi resgatada, com toda a força, por organizações de mulheres e feministas para tentar barrar a aprovação, na Câmara dos Deputados, do requerimento de urgência para o Projeto de Lei 1904/2024, que visa equiparar o aborto em caso de estupro após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio no Código Penal brasileiro.
Na noite do dia 12 de junho o requerimento foi aprovado, mas a retomada da campanha não foi em vão – milhares de pessoas seguem se manifestando nas redes, e mais de 300 mil já se engajaram na plataforma de pressão criancanaoemae.org, que visa pressionar dos deputados contra o projeto.
O envolvimento das pessoas se dá, sobretudo, pela comoção diante da chocante consequência que o projeto significaria se fosse aprovado. A crueldade de obrigar meninas a serem mães depois de sobreviverem a uma violência tão perversa como um estupro é equiparável à tortura.
Condenar mulheres vítimas de violência sexual que acessem o aborto legal depois de 22 semanas de gestação a ficar 20 anos na prisão – o dobro do tempo previsto para o seu estuprador – é uma violência impactante.
Mas, além da indignação diante do que o projeto propõe como castigo a crianças e mulheres estupradas, tornando-as vítimas duplamente – em especial, meninas negras, estatisticamente o maior grupo vitimizado, também é absurdo o evidente viés antidemocrático da tramitação deste projeto na Câmara dos Deputados.
Diante de algum fato de “urgência”, parlamentares podem apresentar requerimentos para que as tramitações das proposições legislativas avancem sem cumprir os ritos habituais, como ser discutido em comissões.
Acompanhamos isso recentemente, no caso da calamidade do Rio Grande do Sul. Foi aprovado em plenário um requerimento de urgência para o PL 1564/2024, que tratava de medidas emergenciais para atenuar os efeitos do desastre ambiental nos setores de turismo e de cultura no estado, por exemplo.
Entretanto, o requerimento aprovado para o “PL da Gravidez infantil” ou “PL do Estupro” é totalmente arbitrário e a única justificativa de colocá-lo em plenário parece ser a de que Arthur Lira está cumprindo uma das promessas que fez às suas alianças evangélicas e católicas mais conservadoras, com destaque para a Frente Parlamentar Evangélica. Os autores e autoras do projeto são principalmente do PL (Partido Liberal), MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e Republicanos, siglas acostumadas ao toma-lá-dá-cá de Lira pelo poder.
O Regimento Interno da Câmara permite a solicitação de urgência para tramitação de uma proposta legislativa em quatro casos: “i) defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais; ii) providência para atender a calamidade pública; iv) prorrogação de prazos legais a se findarem; e v) apreciação da matéria (tema) na mesma sessão.”
Nesse sentido, a própria inclusão do requerimento na pauta da sessão do plenário da Câmara, o que chegou a acontecer em 5 de junho, já estaria fora do que está estabelecido no regimento da casa. Vale destacar também que o requerimento sequer apresentou uma justificativa no corpo do texto para a urgência aprovada.
A justificativa de uma suposta “defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais” não se sustenta quando resgatamos, com base em recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e normativas internacionais, como a da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD), conhecida como Conferência do Cairo, da qual o Brasil é signatário, que o direito ao aborto é um direito de saúde e cidadania das mulheres, meninas e pessoas que gestam.
A partir do ponto de vista das políticas públicas e feministas, é também uma dívida democrática. Portanto, retroagir com esses direitos significa justamente o contrário de defender a democracia e as liberdades fundamentais.
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Um dos falsos argumentos utilizados pelo movimento anti-direitos é de que esse tipo de aborto se configura uma “calamidade pública”. O projeto é bastante recente, foi apresentado há um mês, e se refere a um direito que está vigente no Brasil há mais de 80 anos no Código Penal de 1940, que é o aborto legal em casos de estupro.
Se há algo que pode ser, de fato, considerado urgente é a necessidade da sociedade acabar com as várias violências contra as mulheres, meninas e população LGBTQIA+, principalmente negras.
É sim, preciso, fazer cumprir o direito ao aborto em caso de estupro. O Brasil vive uma epidemia de meninas grávidas por estupro, como afirmado recentemente pela ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. Nos últimos 10 anos, a média de crianças com menos de 14 anos que deram à luz a bebês no Sistema Único de Saúde (SUS) foi de cerca de 20 mil por ano, sendo 74,2% negras, segundo dados do DataSUS.
Conforme o Código Penal, a relação sexual com meninas dessa idade ou menos é considerada estupro de vulnerável e, portanto, todas elas teriam direito de acessar o aborto legal. Além disso, é importante destacar que esses dados não incluem as crianças que morrem por complicações na gestação precoce, nem aquelas que buscam serviços de aborto ilegais.
O terceiro argumento para a solicitação de urgência para votar o “PL do Estupro” se refere aos “prazos legais” para urgência de um projeto de lei. Apesar de o regimento não definir o que seriam esses prazos legais, entende-se que se tratam de legislações que estão no fim do prazo e haveria urgência em estendê-las.
Apesar de não ter tramitado em regime de urgência, um exemplo de projeto que tratou de prazos foi o da desoneração da folha de pagamento, que foi prorrogada pelo Congresso. Nesse sentido, o PL da Gravidez Infantil nada tem a ver com essa possibilidade, uma vez que o projeto não trata sobre prazos de leis.
Diante dessas condições, ainda há uma quarta possibilidade para o requerimento de urgência, que trata da “apreciação da matéria na mesma sessão”. Isso significa que, a aprovação do requerimento de urgência na sessão em plenário, isenta o projeto de ser debatido pelos ritos comuns, em especial as comissões, para ser aprovado. Assim, o projeto de lei estaria pronto para ser votado, já que sua urgência foi reconhecida, ainda que de forma pouco transparente e injustificada.
Sem Arthur Lira anunciar o requerimento de urgência na Ordem do Dia, quando perguntado durante a sessão, sem projetá-lo em telão no Plenário da Câmara, como de praxe para qualquer votação, o requerimento foi aprovado por votação simbólica, não nominal, na surdina, em apenas 24 segundos.
Apenas se manifestaram contrários os partidos PT, PCdoB e PSOL – e este último ainda teve que recorrer para conseguir registrar seu voto, conforme feito pela deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS).
A votação foi autoritariamente quase que escondida de quem assistia de casa e de parlamentares presentes no Plenário. Como reação, no dia seguinte, os movimentos de mulheres e feministas ocuparam as ruas em diversos estados para escancarar o abuso de poder sobre seus corpos e de nossas crianças.
Assinaram o requerimento contra o direito das mulheres e crianças: Altineu Côrtes (PL-RJ), Líder do PL (representando 95 parlamentares); Aureo Ribeiro (SOLIDARIEDADE-RJ), Líder do Bloco UNIÃO, PP, Federação PSDB CIDADANIA, PDT, AVANTE, SOLIDARIEDADE, PRD (representando 160 parlamentares) e Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), Líder do Bloco MDB, PSD, REPUBLICANOS, PODEMOS (Representado 14 parlamentares).
Nesse sentido, os autores do requerimento de urgência demonstram os efeitos da coalizão de forças entre extrema direita e Centrão dentro da composição parlamentar mais conservadora da história do Congresso Nacional brasileiro.
Um grupo que, em vez de melhorar as condições de vida da população brasileira, destina tempo e esforços para a aprovação de proposições legislativas que nada mais são do que um projeto político conservador e fundamentalista religioso para destruir direitos conquistados por meio de lutas históricas pelas minorias representativas, no caso as mulheres meninas e pessoas que gestam.
Denunciamos aqui essa articulação misógina e antidireitos que tem sido naturalizada na Câmara dos Deputados quando mobilizada por ideologia que se sobrepõe aos ritos democráticos.
Apesar de haver sinalização sobre a votação ocorrer apenas após as eleições municipais, o PL1904/24 pode ser votado a qualquer momento, assim como também ameaça o Estatuto do Nascituro. Diante do último exemplo de tramitação antidemocrática praticada pelo presidente da Câmara, sabemos que o risco é muito grande.
Hoje é o PL do Estupro, mas não é o único perigo apresentado pela Bancada Religiosa Conservadora, conhecida nos noticiários como Bancada Evangélica, que também está sendo chamada de “Bancada do Estupro”, justamente em referência ao PL1904.
É fundamental mantermos a mobilização da sociedade contra a ofensiva conservadora sobre os direitos sexuais e reprodutivos, dentro e fora das mídias sociais, fortalecendo nossos direitos básicos. “A Liberdade é uma luta constante”, como diria Ângela Davis.