Ivônio Barros
Assessor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e membro da Coordenação do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos

Depois da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos começaram a ganhar uma condição social e política que jamais tiveram antes. Os ensaios do período entre-guerras nos Estados Unidos e na Europa agora ganharam contornos mais institucionais e globais. Isso não significa que o mundo passou a respeitar os direitos humanos. Ao contrário, em geral, a situação de desrespeito e descuido com os direitos humanos continuou. A Guerra Fria foi instaurada, o mundo iniciou a corrida nuclear, os conflitos regionais se multiplicaram, os norte-americanos invadiram o Vietnã e lá jogaram Napalm em vilarejos de civis, queimando crianças e mulheres. O terrorismo passa a ser usado sistematicamente como arma das superpotências em África, Oriente Médio e Ásia para jogar grupos e etnias umas contra as outras, golpes de estado são patrocinados pelos Estados Unidos e a tortura é instituída como meio corriqueiro de punição e investigação nas ditaduras militares pró-ocidentais. Em escala mundial, os direitos humanos continuaram a ser desrespeitados quase como no Holocausto, quase como na invasão japonesa à China e ao sudeste asiático.

Mas algo estava acontecendo, ao mesmo tempo. No âmbito das Nações Unidas e, acompanhando o processo de reconstrução da Europa, novos ordenamentos internacionais começaram a ser firmados.

No período anterior à Segunda Guerra Mundial, vários movimentos sociais ganharam expressão na luta pelos direitos civis e políticos das mulheres, os quais, de certa forma, completaram o ciclo institucional e político, do ponto de vista da cidadania liberal, das revoluções inglesa (século XVII) e francesa (século XVIII).

No pós-guerra, o que começa a tomar forma é um conceito mais amplo, que, ao mesmo tempo em que vai além da idéia de cidadania política, caracteriza a nova cidadania social e econômica que o Ocidente apregoa como expressão máxima da civilização.

Nas décadas de 1960 e 1970, quando nova onda de mobilizações e articulações se processavam nos Estados Unidos e na Europa, no Brasil, a ditadura militar limitava e impedia que a juventude e os movimentos sociais seguissem a agenda mundial. Mas, tão logo se inicia a rearticulação de movimentos sociais de cunho popular no Brasil, vê-se que dois tipos de atores vão se sobressair nos anos seguintes: a juventude estudantil e as mulheres. Enquanto os primeiros têm por base social as classes médias, os com forte participação feminina, especialmente nos anos 1970 e 1980, não estão localizados tematicamente, nem são protagonizados por grupos sociais homogêneos. Há forte participação popular e de classes pobres nos movimentos pelo transporte, em São Paulo, nos movimentos por moradia, no Rio de Janeiro, nos movimentos por saúde, em várias regiões do Brasil e assim por diante.

Não tivemos, no Brasil, movimentos com a expressividade das Mães da Praça de Maio, da Argentina, mas as mulheres formavam a maioria dos comitês pela anistia no Brasil e sempre estiveram à frente das campanhas pelas liberdades democráticas e para a recuperação histórica e reparação política dos crimes da ditadura.

Os movimentos da juventude estudantil enfrentaram altos e baixos e hoje não têm a mesma forma e expressividade que tiveram nos fins da década de 70 do século passado. Mas os movimentos de mulheres foram à frente, no Brasil e em quase todo o mundo. Por aqui, passos pequenos, mas seqüenciais, foram dados em políticas públicas nas áreas de saúde, segurança e educação. No início dos anos 1980, foram criados os conselhos de direitos das mulheres, as delegacias especializadas em crimes contra as mulheres, os programas de saúde das mulheres etc.

Cada passo no campo das políticas públicas era reflexo de lutas difíceis e contínuas desses movimentos sociais.

Apesar de aparentarem um foco único no recorte de gênero, pois sempre trataram de defender e lutar pelos direitos das mulheres, foi o amadurecimento político desses movimentos que nos fizeram ver, a partir dos anos 1990, que se tratam de movimentos de direitos humanos. Movimentos que, ao colocarem em evidência a superexploração e a subordinação da mulher, desnudam o desrespeito geral aos direitos humanos. Não há direitos humanos sem as mulheres. Ao ver isso, os movimentos começam a perceber que cidadania só existe na medida em que existir direitos humanos em sua plenitude.

A presença e o protagonismo das mulheres nos movimentos de direitos humanos sempre existiram, mas começam a se expressar politicamente como fundamental nessa última quadra de nossa história recente. Esse protagonismo deve ser incentivado e apoiado por todos os outros movimentos. Ele fortalece o conjunto da luta pelos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais uma dimensão civilizatória que não se consegue sem as mulheres.

No entanto, as mulheres ainda são minoria na direção dos movimentos sociais, sindicais e partidários. Sua presença nos postos de direção do aparato estatal é insignificante, especialmente no Brasil. Só não é menor que a presença de afrodescendentes.

Está na hora de os movimentos sociais de direitos humanos avançarem um pouco mais no reconhecimento do protagonismo das mulheres e na compreensão de que a agenda dos movimentos de mulheres traz o significado e o valor de transformação social, cultural e política de que precisamos para avançar nos direitos humanos.

A boa notícia recente, num âmbito ainda muito restrito, é que o Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos agora conta com uma coordenação colegiada formada por três dirigentes mulheres e dois homens. Pelo menos, nesse contexto, está se reconhecendo a capacidade diretiva e o protagonismo das mulheres.


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