Beatriz Galli
Advogada, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Toronto, consultora de direitos humanos do Ipas Brasil e membro do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher - CLADEM Brasil

A condição de ilegalidade do aborto contribui para práticas discriminatórias e o reforço de estereótipos de gênero por parte de agentes policiais e integrantes do Ministério Público e Judiciário. Além da discriminação e violência institucional que ocorrem no âmbito dos serviços de saúde. A hipocrisia social permeia o debate público sobre a descriminalização do aborto no Brasil.

O caso de Mato Grosso do Sul é emblemático neste sentido. Em 13 de abril de 2007, a polícia do estado, invadiu uma clínica de planejamento familiar e confiscou os registros médicos de quase dez mil mulheres. A invasão se seguiu a uma notícia amplamente divulgada na mídia, que acusava a clínica de fornecer serviços ilegais de abortamento.

A polícia falhou ao não garantir a privacidade das mulheres, uma vez que existe uma resolução do Conselho Federal de Medicina que determina que as autoridades judiciais devam apontar um perito médico para examinar os prontuários médicos com o objetivo de preservar os dados ali contidos. Além disso, posteriormente os nomes, endereços das mulheres processadas pelo crime de aborto foram divulgados na internet.

Como alternativa ao julgamento diante de um júri, a maioria das mulheres aceitou o oferecimento de suspensão do processo e, em contrapartida, algumas mulheres foram designadas a prestar trabalhos comunitários com crianças em creches e escolas. Mulheres que ainda não foram processadas vivem com medo de serem investigadas criminalmente, podendo ter a sua vida privada revelada para suas famílias, seus colegas de trabalho ou o público de forma geral.

Em dezembro de 2009, a médica Neide Motta Machado, a dona da clinica de Planejamento Familiar invadida pela polícia, foi encontrada morta em seu carro e as investigações policiais concluíram que houve suicídio. Em abril de 2008, quatro profissionais de saúde que trabalhavam na clínica foram julgadas pelo Tribunal do Júri e foram condenadas a penas que variaram de sete anos a um ano e três meses de prisão pela participação em 25 abortos realizados na clínica.

Consequências da ilegalidade do aborto: realidade a enfrentar

No Brasil, o aborto é considerado crime, exceto em duas circunstâncias: em caso de risco de vida para a gestante e se resultante de estupro. Estima-se que sejam realizados anualmente cerca de um milhão de abortos no Brasil. Além disso, ocorrem cerca de 250 mil internações por ano para tratamento das complicações de aborto no país.

O aborto inseguro está entre as principais causas evitáveis de morte materna no Brasil e revela um cenário de desigualdade e injustiça social. Sabe-se que “o aborto é praticado por mulheres de todas as classes sociais, níveis de escolaridade, etnia e religiões. A diferença está nas consequências. Em Salvador, por exemplo, morrem em decorrência e abortos inseguros, essencialmente as mulheres jovens, pardas e negras, com formação primária”.

A condição de ilegalidade do aborto gera ainda situações de violência institucional e discriminação na assistência ao abortamento nos serviços de saúde. Por exemplo, estudos comprovam que as mulheres em situação de abortamento enfrentam retardo do atendimento, na falta de interesse das equipes em escutar e orientar as mulheres ou mesmo na discriminação explícita com palavras e atitudes condenatórias e preconceituosas. A discriminação por parte dos profissionais de saúde também é derivada desta condição de ilegalidade. Entrevistas realizadas com profissionais revelam que em contraste com a representação simbólica da maternidade, como essência da condição idealizada do ser mulher e da realização feminina, o aborto pode sugerir uma recusa da maternidade e por isso pode ser recebido com muitas restrições por parte dos profissionais de saúde.

Inversão de valores no contexto eleitoral

A Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) aprovou o projeto de lei 478/07 que dispõe sobre a proteção ao nascituro. O projeto versa sobre os seres humanos não nascidos, ou embriões (chamados de nascituros) concebidos antes de sua implantação no útero ou, na fertilização in vitro, antes da sua transferência para o útero, conferindo-lhes a mesma proteção jurídica dos seres humanos, em particular de crianças e adolescentes. Na prática este projeto pode ter efeitos perversos para a saúde e a vida das mulheres, uma vez que pode inviabilizar o acesso ao aborto nos casos previstos em lei, e agravar as barreiras e desigualdades de gênero no acesso a saúde para tratamento das complicações de aborto. O projeto confere direito absoluto a vida aos embriões em detrimento dos direitos humanos das mulheres. Seguindo essa lógica, cada mulher pode ser considerada uma criminosa em potencial, o que levaria a criminalização das mulheres que tenham realizado aborto, ou mesmo em casos de gravidez ectópica ou aborto espontâneo.

Não é a criminalização do aborto que irá impedir ou evitar a sua prática. Ao contrário, só aumenta o estigma social e contribui para que ocorram situações de violações de direitos humanos, solidão e isolamento das mulheres. A situação de ilegalidade do aborto viola o direito à vida e à saúde das mulheres, impedindo o acesso ao aborto seguro, colocando as suas vidas em risco, e impedindo o exercício dos direitos reprodutivos livre de todas as formas de coação e violência.


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