Com intensa flexibilização do licenciamento ambiental, Projeto de Lei 2159 deve impactar quase a totalidade dos territórios quilombolas.
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Parlamentares defensores dos interesses do agronegócio impulsionados pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) mobilizam novos esforços para avanço no Senado Federal do Projeto de Lei 2.159/2021, que redefine as normas para licenciamento ambiental. Aprovado em maio de 2021 na Câmara dos Deputados, a articulação do agronegócio no Legislativo tem sinalizado que, em breve, a senadora Tereza Cristina (PP-MS) deve apresentar seu relatório na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) da casa legislativa.
Em nota técnica divulgada na quinta-feira (21) a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra de Direitos denunciam que, caso aprovada, a medida deve acelerar a degradação ambiental dos territórios quilombolas, ampliar o racismo ambiental contra as comunidades e causar grandes retrocessos nos direitos fundamentais garantidos aos povos e comunidades tradicionais do Brasil. Isso porque, ainda que “PL da destruição”, como é conhecido, regulamente a regras gerais para o licenciamento de atividade ou de empreendimento de potencial dano ambiental, a flexibilização e o desmonte das atuais regras, contidas no texto do projeto, causarão impactos profundos para os territórios tradicionais quilombolas. Atualmente, o licenciamento ambiental é regido pela Portaria Interministerial 60/2015 e pela Instrução Normativa 111/2021.
Acesse aqui a nota técnica sobre o PL 2.159/2021
“O PL 2.159/2021 denota a tentativa de fragilizar a legislação ambiental, a fim de que empresas possam se instalar e operar sem os óbices dos procedimentos exigidos para outorga de licenças, implicando em risco ao meio ambiente e aos modos de vida das mais de 8.400 localidades quilombolas identificadas pelo IBGE no Censo 2022, e grave violação aos direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal”, aponta a nota conjunta.
“Com aprovação do PL da forma que está o impacto é certo nas comunidades quilombolas, pois o atual projeto exclui do processo de licenciamento a consulta, livre, previa e informada mais de 90% das comunidades quilombolas, tendo em vista que no atual projeto só serão consultadas as comunidades com o território delimitado, o que constitui violação de direitos daquelas comunidades que já estão tendo seus direitos violados pelo estado que não delimitou e titulou o território, passados mais de 36 anos da garantia constitucional. Não é justo que, as comunidades quilombolas sejam penalizadas sucessivamente por danos das quais não deram causa”, destaca a coordenadora jurídica da Conaq, Vercilene Dias.
As organizações ainda questionam o esforço da bancada ruralista em avançar na aprovação do “PL da destruição” ao mesmo momento em que as atuais normativas de licenciamento ambiental para quilombos devem passar por revisão pela Diretoria de Territórios Quilombolas, área recriada em setembro e lotada no Incra, responsável pelas atividades de licenciamento ambiental em quilombos.
“O que precisamos nesse momento é que a diretoria do Incra revise as normativas existentes sobre o processo de licenciamento, que foi feita sem consulta às comunidades e tem acirrado conflitos em territórios quilombolas, ao reproduzindo vícios presentes nas normativas anteriores que violam direitos quilombolas”, complementa Vercilene. A liderança aponta que a aprovação de uma normativa “prejudica não só as comunidades quilombolas que, buscarão o poder judiciário para fazer cessar violações, mas também o próprio empreendedor que ficará preso a um imbróglio jurídico por anos, que possivelmente teria sido evitado se o Estado brasileiro cumprisse com suas obrigações constitucionais, legais e supralegais de consultar as comunidades quilombolas sobre as medidas que lhes afetam”, destaca.
Abaixo, apresentamos algumas das principais alterações previstas na Lei e de impactos para comunidades quilombolas.
Alta restrição
O Projeto de Lei em tramitação no Senado estabelece que apenas territórios quilombolas titulados serão considerados em procedimentos de licenciamento ambiental. Com isso, o processo de licenciamento ambiental se aplicaria apenas para os atuais 24 territórios quilombolas com títulos totais de um universo de 8.400 comunidades quilombolas reconhecidas pelo IBGE, o que representa 0,28% das comunidades quilombolas. As organizações apontam que a redação do Projeto de Lei é vaga ao não tratar se o processo de licenciamento ambiental se aplica para territórios com titulação parcial.
Pela atual legislação apenas territórios quilombolas com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicados que podem ter a elaboração de análises para medição de impactos do empreendimento ao território. Dos 1.906 processos atualmente em aberto no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) 327 tem RTID publicados. Como a publicação do RTID é etapa anterior à emissão do título no processo de regularização fundiária, uma eventual mudança da lei reduziria ainda mais o número de comunidades quilombolas submetidas a processo de licenciamento ambiental.
A mudança da norma, caso aprovado o PL, reduziria ainda mais o universo de comunidades que teria, por exemplo, o desenvolvimento de estudos de impacto ambiental do empreendimento, que possa participar de ações de consulta prévia para validação ou não da iniciativa e negociar previamente medidas de compensação aos territórios pelos impactos da construção e operação de uma hidrelétrica ou mineradora, por exemplo.
Como a atribuição de titular um território quilombola é do Estado brasileiro, restringir a aplicação de uma lei de proteção ambiental à territórios titulados é, na avaliação da CONAQ e Terra de Direitos, uma punição do Estado às comunidades sobre um papel que o próprio Estado não tem cumprido. Para as organizações esse afunilamento da aplicação da licença ambiental aprofunda o racismo ambiental. “A utilização do critério de titulação enquanto requisito para o reconhecimento da existência quilombola em zonas de influência direta do empreendimento é beneficiar o Estado brasileiro por sua própria torpeza”, alertam na nota.
Considerando o atual ritmo de titulação do Estado brasileiro, a aplicação da licença ambiental não deve sofrer grandes variações nos próximos anos. Segundo levantamento da Terra de Direitos realizado em maio deste ano, serão necessários 2.708 anos para titular integralmente os territórios com processos abertos no Incra, caso seja mantido o atual ritmo. Ainda que o atual governo tenha maior abertura para a pauta, não houve aceleração significativa das titulações nos últimos períodos.
“O enfraquecimento das políticas de segurança ambiental, como é o caso do que propõe o PL 2.159 em relação ao licenciamento ambiental, pode gerar um aprofundamento do racismo ambiental contra os quilombos, ao permitir que não haja fiscalização aos empreendimentos e avaliação de seus impactos, nem mesmo medidas de compensação quanto aos danos ao meio ambiente e às comunidades”, aponta a nota.
Ausência de consulta prévia
As organizações ainda destacam que, ao contrário do que determina a Convenção 169, o Projeto de Lei 2.159 também não passou por processo de consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas. A Convenção determina que medidas administrativas e legislativas de impacto aos territórios e modos de vida de povos tradicionais devem ser submetidas à consulta.
O prazo para manifestação da “autoridade envolvida”, cargo criado pelo projeto de lei, também inviabiliza a realização de consulta às comunidades diante de empreendimento de impacto ao território tradicional. Pelo PL2.159 a autoridade possui o prazo máximo de 40 dias para se manifestar sobre o empreendimento, o que compreende a realização da consulta e outros estudos. Com isso o projeto de lei em tramitação contribui com a invisibilização das comunidades quilombolas e não reconhecimento pela lei e empreendimento.
Caso a lei seja aprovada serão recorrentes situações como a da violação de direitos das mais de 14 comunidades quilombolas do oeste do Pará. Em 2013 a Empresa Brasileira de Portos de Santarém iniciou as atividades em Santarém (PA) e relatou no Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA) – elaborado após 2 anos de intensa reivindicação das comunidades – que “na área diretamente afetada pela implantação do Porto da Embraps não foram encontradas populações tradicionais legalmente reconhecidas”. A ausência de reconhecimento da existência das comunidades e de processo de consulta prévia contribuiu para intensos impactos ambientais pelo empreendimento.
“Se o PL 2.159/2021 for aprovado, empreendimentos que estão sobrepostos à territórios quilombolas terão o licenciamento ambiental simplificado e avançarão cada vez mais sobre os territórios. Casos como do quilombo Pérola do Maicá (Santarém), que está cercado por portos que foram instalados sem obedecer a legislação ambiental, serão cada vez mais recorrentes”, aponta a assessora jurídica popular da Terra de Direitos, Selma Corrêa.
Impactos ambientais e climáticos
As organizações destacam que as novas regras de licenciamento ambiental propostas no Projeto de Lei devem intensificar o colapso climático. Isto porque coloca “em xeque os aspectos procedimentais dos instrumentos da política nacional de meio ambiente”, aponta a nota.
Para as autoras da nota técnica os esforços da bancada ruralista e de setores como da mineração para flexibilizar a regras de licenciamento vão na contramão dos movimentos internacionais de avaliação de impactos de empreendimentos e de reconhecimento dos territórios tradicionais como áreas de preservação e equilíbrio climático.
De acordo com o MapBiomas, os territórios quilombolas são os que apresentam as menores taxas de desmatamento. Entre 1985 e 2022 a perda de vegetação nativa foi de 4,7% contra 17% de áreas privadas. Em territórios titulados a taxa é ainda menor: 3,2%.
Kathllen Tiê, assessora jurídica da Terra de Direitos, afirma que a aprovação do PL da Destruição vai contra os compromissos climáticos assumidos pelo Brasil nas Conferências das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU, as COPs. “A aprovação do PL 2159/2023, que flexibiliza o licenciamento ambiental, contraria os compromissos climáticos assumidos pelo Brasil nas COPs, especialmente ao ignorar a proteção de territórios quilombolas, que são essenciais para mitigar a crise ambiental e climática. Enquanto a comunidade internacional se reúne na COP 29 em Baku, Azerbaijão, em busca de acordos para alcance das metas climáticas de resfriamento do planeta, o Brasil caminha na direção oposta, fragilizando salvaguardas ambientais.