30% do PIB brasileiro anual é apropriado pelos rentistas, aquele 1% de parasitas sociais, destruidores de qualquer projeto que possamos ter de um Brasil voltado ao cuidado com gente e a natureza
Cândido Grzybowski
Já estava na hora do governo democrático vitorioso nas urnas de 2022 ser um pouco mais ousado em relação à economia despedaçada e reprimarizada que temos hoje. A NIB é, sem dúvida, uma demonstração política do Governo Lula III de mudar e regular a economia que temos, que só serve aos interesses do rentismo parasitário da classe dominante, contra a maioria da população brasileira. Mas a proposta política é ousada o suficiente? Será capaz de mudar a estrutura e os processos para que a economia seja a base para cuidar de gente e da natureza, como enfaticamente anunciado por Lula na sua posse há um ano e pouco?
Elegemos o Lula para que organize um governo que mude de rumo e possamos voltar a sonhar com um Brasil para todas e todos. Sabemos que a tarefa é árdua e longa, mas também sabemos que o que realmente importa é estabelecer processos com potencial transformador, contando para isto com a participação decisiva de cidadanias ativas. A tarefa de mudar necessita de intencionalidades e de pensar grande, sem dúvida, mas mais ainda de ação, de militância, de engajamento, de participação radical de cidadanias determinadas a partir do chão da sociedade civil, empurrando e sustentando as propostas na esfera política. As instituições do poder são o que são, mas só as cidadanias tem poder instituinte e constituinte pelo voto e pela ação permanente. Agora, se o olhar prioritário dos mandatados pelo voto para o poder estatal é prioritariamente voltado para as elites, a coisa toda muda para nada mudar na essência. Ninguém minimamente informado e atento ignora a dificuldade do governo Lula com o Congresso Nacional que temos, dominado pelo Centrão e as bancadas, sem compromisso com direitos iguais de cidadania na diversidade. O Centrão não passa de um acordão entre verdadeiros lobbies em busca de vantagens para seus bolsos e redutos eleitorais, sem compromisso com cidadanias e o país. Mas, ao mesmo tempo, é de estranhar a desmobilização das cidadanias, como se não fossem de interesse da gente as propostas do governo. Por que tal fosso entre o chão da sociedade e o governo? De modo geral, por que votamos dando mandatos de representação nossa – cidadanias brasileiras em sua igualdade na diversidade - nas instituições e ficamos esperando? Se não tentarmos de romper este fosso, nem que seja por improvisadas pinguelas, a democracia continuará encurralada e, pior, talvez o fascismo volte com força redobrada.
Mas foquemos um pouco mais na proposta da NIB feita recentemente. Antes de tudo, precisamos reconhecer o esforço de restabelecer o protagonismo estatal sobre a economia. Isto é o mínimo que se espera de uma democracia. É o Estado que deve regular a economia e não o contrário, a livre competição entre donos do capital, com seus recursos em busca de acumulação, explorando o trabalho, acima de tudo, acima até da produção de bens e serviços que sirvam para o bem estar da sociedade. Parece absurdo, mas o compromisso primeiro do capital é sua autovalorização, ou seja, ganhar e ganhar, quanto mais e de forma mais fácil melhor. Um cassino, sem dúvida! Há os que perdem, mas não há limite para o ganho. Até de impostos os donos de capitais sabem se livrar ou conseguem isenções, nem sempre tão legais, com paraísos fiscais, subterfúgios, benesses...
É virtuoso o anúncio do Governo Lula de propor uma política econômica industrial e usar os instrumentos do Estado para tanto. Mas, lembremos das “destruições” empreendidas também pelo Estado e, de um modo mais amplo, pelo imperialismo vigente, capaz de impor “regras econômicas mundiais”, a sua moeda e as instituições financeiras como BM e FMI. A OMC foi mais uma, mas quando o imperialismo foi confrontado pela maioria dos países, foi ela que perdeu importância, mas não os ditames do imperialismo. Este é o problema de fundo. A desendustrialização brasileira e de outros países foi uma imposição do “Consenso de Washington” na perspectiva da globalização, valendo-se do domínio do dólar nas transações internacionais. A reprimarização, de interesse de mineradoras e agronegócio, contou com a alavanca externa. E voltamos a ocupar um lugar parecido a uma colônia produtora de matérias primas. Saudades do Celso Furtado que, com sua notória capacidade e brilho, nos lembrava isto!
O certo é que, hoje, para grande parte dos empresários, vale mais viver do rentismo do que de investimentos concretos de risco. Como nos lembra insistentemente Dawbor, 30% do PIB brasileiro anual é apropriado pelos rentistas, aquele 1% de parasitas sociais, destruidores de qualquer projeto que possamos ter de um Brasil voltado ao cuidado com gente e a natureza. As fortunas do punhado de rentistas crescem no mesmo ritmo que a exclusão social, a miséria e a fome. Só que estas matam, enquanto que o rentismo floresce na sombra e água fresca, com apoio garantido do Banco Central e até com o compromisso público do governo de plantão. Afinal, o “arcabouço fiscal” desenhado por Haddad e equipe visa dar tranquilidade aos especuladores rentistas e não o bem estar ao Brasil, com uma economia em crescimento.
Não cabe detalhar aqui o que a Nova Indústria Brasil (NIB) propõe. Destaco enfaticamente a importância do governo sinalizar uma intenção de regular a economia em vista de um processo que seja capaz, no mínimo, de dar um novo rumo ao Brasil. Estamos há quarenta anos perdendo capacidade industrial e nos tornando dependentes da produção e exportação de produtos primários, minerais e do agronegócio. Enfim, ao invés de ganharmos uma economia mais produtiva, mesmo capitalista, voltamos a uma posição de dependência das exportações de commodities, de extrativismo subserviente aos interesses das potências capitalistas globais. Trata-se de um caminho de volta a uma economia colonial. Que tenhamos setores da classe dominante brasileira totalmente contentes com isto não estranha, nem mesmo a sua inclinação autoritária e fascista. Mas a continuidade de processos destrutivos da natureza, com grilagem de terras, ódio e violência a povos indígenas e comunidades tradicionais, desmatamento, extrativismo, contaminação das águas e mudança climática tem a maior responsabilidade por nos devolver a uma situação de país dependente e mero exportador de commodities.
Diante disto, o mínimo a esperar de um governo Lula é propor algo como o NIB. Mas, levando em conta o modo como foi elaborado e lançado tal programa, poderá mudar o rumo do nosso país no contexto das nações? Destaco aqui dois aspectos fundamentais que enfrentam a ortodoxia econômica, o que é muito necessário, sem dúvida. Trata-se de definir algo abrangente na forma de Missões/Objetivos por setores. Não é esta ou aquela indústria, mas processos de integração industrial por setores. Ao mesmo tempo, são estabelecidos Princípios Orientadores, carregados de sentido democrático includente. [i]
O NIB foi lançando com pompa, com presença de quase todos os ministérios (menos o ministro da Fazenda, F.Haddad – emblemático, dado o contexto) e o recriado Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (criado no Governo Lula I, em 2004). Foi gestado por um grupo de trabalho liderado por Geraldo Alkimin, o vice-presidente e ministro da Indústria. Muitas pessoas qualificadas do mundo acadêmico participaram do processo.
Como é de esperar, a grande mídia reagiu com críticas. E a Bolsa caiu. Coisas a esperar, pois o plano tem a virtude de demonstrar que o Governo Lula está afim de reestabelecer o devido protagonismo do Estado Brasileiro, não aquele capacho e subserviente da banca. Chega de “Estado Mínimo” do neoliberalismo. Mas, atenção, estamos diante de forças nacionais e internacionais poderosas, dispostas a impedir qualquer aventura deste tipo pelo mundo, ainda mais num país de importância estratégia pelo tamanho da população e território, com imensos recursos naturais, como o Brasil. Este é o contexto e a ousadia. Como cidadanias, devemos saudar a iniciativa.
Porém, é algo que nasce um tanto velho, com inspiração desenvolvimentista – busca de crescimento de uma economia capitalista – e sem menção a nenhuma transformação estrutural necessária, como se fosse virtude fazer o crescimento capitalista. Só são apontadas orientações gerais, atreladas a princípios estratégicos com potencial democrático de inclusão social e sustentabilidade. Mas como em contexto capitalista?
Destaco também a questão estratégia da participação, para além das equipes de técnicos e ministérios. Considerar a Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial como participação da sociedade civil beira a agressão política. O CNDI esteve no lançamento, não sei qual foi a sua participação na elaboração. Mas parece inaceitável considerar o CNDI como grande representante da complexa sociedade brasileira. Afinal, são somente 18 entidades empresariais setoriais e três centrais sindicais que compõem o CNDI. E onde ficaram todas as cidadanias ativas do país, como MTST, MST, os Povos Indígenas, os Quilombolas e os Tradicionais, as Redes de Agroecolonia, os Movimentos contra a Mineração, os Atingidos por Barragens, os múltiplos movimentos de Favelados, os movimentos contra o racismo que combina com colonialismo, os potentes movimentos em torno à saúde coletiva, os movimentos de mulheres e contra a violência, os que lutam contra a fome e a miséria, o amplo leque de organizações de cidadania ativa por direitos, os movimentos contra a mudança climática e por justiça social, os engajadas na defesa e difusão da vibrante cultura popular, as igrejas (por que não?) ... Enfim, a lista dos que de algum modo serão impactados por projetos da NIB é a população como um todo. Claro, grande maioria só vota e acaba não tendo uma voz própria capaz de ser ouvida.
Toda a proposta do NIB seria algo mais virtuosa se ao invés de apresentar um projeto tecnocrático de industrialização, a cidadania ativa do país em sua diversidade ampla (ainda insuficiente para incorporar a todas e todos) tivesse sido envolvida, sua voz escutada e seu protagonismo convocado para se contrapor aos rentistas parasitas. Economia não é coisa de empresários interessados em acumular, é a produção das condições de vida, cada vez mais interdependente, que precisamos num gigante país como o Brasil. Economia é um campo de disputas e precisa ser politizado e fecundado por princípios e valores éticos de democracia ecossocial, coisa que só a multidiversidade e a pluralidade de cidadanias ativas pode gestar. Ainda há tempo, mas a vontade política do núcleo central do poder olha para este lado? Ou tem medo de enfrentar o Centrão capacho dos interesses corporativos que ameaçam a democracia?
[i] O melhor artigo que li a respeito é de Paulo Klias. Ver: P.BLIAS. “Nova Indústria e o desafio à ortodoxia publicado originalmente em Outras Palvaras. Acessado em Combate ao Racismo Ambiental, de 24 de janeiro de 2024.
fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/