"A tragédia envolvendo o duplo assassinato e sua investigação, apesar de dolorida, ajudou a escancarar como as instituições políticas e policiais do Rio estão enredadas em malha que envolve parte importante da criminalidade organizada. Bicheiros, policiais desonestos, traficantes, matadores especializados e políticos corruptos aumentam a cada dia seu poder.
O buraco é ainda mais fundo: em quinze anos, Rivaldo Barbosa é o quarto ex-chefe de Polícia Civil preso sob a acusação de ter se aliado ao crime", escrevem Bruno Paes Manso, Luiz Eduardo Soares, Daniel Hirata e Rafael Soares.
Bruno Paes Manso é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo e cientista político. Daniel Hirata é sociólogo e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF. Rafael Soares é repórter especial do jornal O Globo.
O artigo é publicado por O Globo e reproduzido por André Vallias, em sua página no Facebook, 28-04-2024.
Eis o artigo.
No dia 24 de março, a Polícia Federal prendeu três suspeitos de ser os mandantes dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes. Desde que o crime ocorreu, em 14 de março de 2018, foram mais de seis anos de espera, uma longa jornada cheia de idas e vindas, que escancarou o grau de degradação institucional no Rio de Janeiro.
Os detidos são centrais na vida pública e institucional fluminense. O conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão começou na política em 1997, como vereador. Dois anos depois, foi eleito deputado estadual — e só saiu da Assembleia Legislativa em 2015, após cinco mandatos consecutivos, para fiscalizar (ou acobertar) no TCE seus antigos aliados.
Chiquinho Brazão atua desde 2004 na defesa dos interesses do clã. Foi vereador, duas vezes deputado federal e, apenas seis meses antes de ser preso, foi nomeado secretário de Ação Comunitária pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes. Um dos focos da família — cuja base eleitoral é a região de Jacarepaguá e a comunidade de Rio das Pedras — é a regularização de loteamentos clandestinos na cidade, objeto de interesse de milicianos. Na Câmara Municipal, Chiquinho conheceu Marielle, que lutava para levar mais moradias e políticas sociais a bairros pobres.
A participação de Rivaldo Barbosa no crime foi talvez mais surpreendente. O ex-chefe da Polícia Civil foi acusado pelo autor dos disparos, o ex-PM Ronnie Lessa, de facilitar a vida de assassinos e mandantes poderosos, relegando ao esquecimento investigações que comprometiam aliados do jogo do bicho e das milícias. Os homicídios de Marielle e Anderson seriam só mais dois casos numa extensa lista de omissões e conivências com o crime.
A tragédia envolvendo o duplo assassinato e sua investigação, apesar de dolorida, ajudou a escancarar como as instituições políticas e policiais do Rio estão enredadas em malha que envolve parte importante da criminalidade organizada. Bicheiros, policiais desonestos, traficantes, matadores especializados e políticos corruptos aumentam a cada dia seu poder. O buraco é ainda mais fundo: em quinze anos, Rivaldo Barbosa é o quarto ex-chefe de Polícia Civil preso sob a acusação de ter se aliado ao crime.
Por isso não parece realista acreditar que sejam suficientes o aprofundamento das investigações e a identificação de outros nomes nessa rede. A crise do Rio deixou de ser caso de polícia e Justiça Criminal. Tornou-se um gigantesco desafio político, que não se resolverá sem a participação da sociedade. Nas eleições municipais deste ano serão eleitos prefeitos e vereadores, justamente aqueles que atuam nas esferas de maior interesse das milícias, como regulação imobiliária, transporte e infraestrutura de serviços e equipamentos urbanos. Pode parecer óbvio, mas o primeiro passo é não eleger políticos aliados aos grupos criminais armados, dispostos a fortalecer essa urbanização miliciana no Rio.
As milícias cresceram graças ao poder que exercem sobre a produção do espaço urbano. Esse domínio permite aos criminosos faturar alto com extorsões, transporte clandestino, vendas de lotes e prédios irregulares, água, luz, internet, gás, entre outros serviços. Parte desses grupos ainda tece parcerias com facções de drogas, ampliando seus lucros e sua influência.
A influência nos territórios facilita a obtenção dos votos para eleger políticos que defendem os interesses do crime. Com o Estado fazendo parte dessa malha promíscua, políticas voltadas à coletividade, como programas sociais, redes de saneamento, fiscalização ambiental, transporte público, investimento em educação e saúde, acabam sucateadas.
A resolução do caso Marielle e Anderson pode ser uma oportunidade histórica para o início da refundação das instituições fluminenses. Talvez não haja tributo maior à memória das vítimas.
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