Estratégia da bancada evangélica para pautar texto em regime de urgência foi alvo de protestos e repúdio
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Lira achou que seria simples rifar um direito que diz respeito a dores tão profundas das mulheres
As reações populares contrárias ao projeto 1904/2024, que ficou conhecido como PL do Estupro, passaram um recado importante das ruas, não só para a bancada evangélica – autora do texto – mas também para a base aliada e para o próprio governo.
Um dia após a aprovação da tramitação do texto em regime de urgência, manifestações tomaram as ruas de diversas cidades brasileiras. Nas redes sociais, o repúdio também foi veemente.
O PL prevê a mesma pena aplicada ao crime de homicídio para interrupções de gestações com mais de 22 semanas. A punição varia de 6 a 20 anos de prisão e valeria, inclusive, para os casos previstos em lei, como gravidez decorrente de estupro, fetos com anencefalia e situações em que a vida da mãe está sob risco.
Em participação no podcast Três por Quatro, a deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP) afirmou que nem mesmo o campo progressista esperava uma reação tão consistente e efetiva da população.
"Os que propuseram o projeto e o Arthur Lira (PP) – que fez aquela manobra para aprovar em menos de 30 segundos o regime de urgência e não nos deixou nem orientar contrariamente ao projeto – não esperavam que houvesse essa reação da sociedade. Muitos de nós também achavam que eles iam levar essa", afirmou a deputada
A parlamentar foi a convidada do mais recente episódio do podcast, produzido pelo Brasil de Fato. Nesta semana, o programa discute a influência e as estratégias da bancada evangélica no Congresso Nacional.
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Apresentado pelos jornalistas Nara Lacerda e Igor Carvalho, o episódio conta com comentários de João Pedro Stedile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo ele, mesmo a direita se deu conta de que as ruas podem pautar o Congresso Nacional
"Eu espero que o governo tenha juízo e entenda esse recado (das ruas). Ele precisa sair dessa encalacrada de que qualquer possibilidade de mudança depende do Congresso. Não é verdade. Então, o governo tem que ajudar para que haja um clima de participação e mobilização popular. Inclusive, para mudar a agenda econômica", ressaltou Stedile.
Nos últimos anos, a bancada evangélica se consolidou como um dos grupos mais influentes no parlamento. Ela atua para pautar uma agenda baseada em valores conservadores. Desde a semana passada, essa estratégia se traduziu no PL do Estupro.
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O texto teve a urgência aprovada no plenário da Câmara dos Deputados no dia 12 de junho em uma votação a jato liderada por Arthur Lira. Ele pautou a matéria sem aviso prévio, em votação simbólica e sem o registro do voto de cada parlamentar no painel eletrônico. O processo levou menos de um minuto.
"Eu gostaria de colocar o próprio Arthur Lira como um elemento importante, porque ele sempre se vende como somente um administrador dos interesses, alguém que tem um papel muito democrático de levar adiante um tema. Na verdade, ele estava negociando esse PL como parte das disputas para a sucessão para a mesa diretora", alerta Sâmia Bomfim.
Segundo ela, não é coincidência que parlamentares bolsonaristas venham conseguindo pautar tantos projetos na Câmara nesta legislatura. "Ele quer esses votos para garantir o nome dele na mesa. Ele achou que poderia ser simples rifar um direito que diz respeito a dores tão profundas das mulheres e das crianças, como é o tema da violência sexual."
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A deputada pontuou que 70% das vítimas de estupro no Brasil são menores de idade. Mais de 60% têm menos de 14 anos. Um terço dos casos de abortos legais realizados no país é de gestações acima de 3 semanas.
Perguntado se os sucessivos ataques aos direitos humanos podem ser usados pelos conservadores para garantir apoio eleitoral no pleito deste ano, João Pedro Stédile ponderou que a pauta terá peso, mas o dinheiro vai ditar o andamento das campanhas.
"Eu acho que (as pautas conservadoras) não são determinantes. Eles vão fazer a campanha para vereador e prefeito utilizando, sobretudo, os esquemas de dinheiro. As emendas parlamentares são uma fábrica de corrupção. O que nós estamos vendo no interior é isso, uma máquina de dinheiro comprando cabos eleitorais e lideranças. Mais que os temas, acho que as próximas eleições serão marcadas pela grana da máquina", disse a liderança do MST.
Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.
Edição: Thalita Pires
Mulheres voltam às ruas de Porto Alegre (RS) em mais um ato contra o 'PL do Estupro'
Nesta quinta (20), manifestantes pediram o arquivamento do projeto, que deve voltar à pauta da Câmara no 2º semestre
“É pela vida das mulheres, legaliza, o corpo é nosso, é nossa escolha”. Essas palavras de ordem foram entoadas por manifestantes ao som da bateria que percorreu as ruas de Porto Alegre (RS), no final da tarde desta quinta-feira (20), durante marcha contra o Projeto de Lei 1.904/2024, conhecido também como "PL do Estupro". Neste segundo ato realizado na capital gaúcha, milhares de mulheres pediam o arquivamento do projeto que equipara o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio.
“Estamos mais uma vez na rua, em Porto Alegre, para nos manifestar contra o PL 1904/2024. A gente já teve na última vez um recuo do Lira, mas agora queremos que isso acabe de fato. Nós não queremos mais esse PL, queremos a vida das mulheres, das meninas e das pessoas que gestam”, afirma a diretora de mulheres da União Estadual dos Estudantes (UEE/RS), Melissa Pires.
De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o PL conta com assinatura de 32 outros deputados, a maioria deles é do Partido Liberal, o mesmo do ex-presidente Jair Bolsonaro, sendo 11 mulheres. A proposta, também chamada do PL da Gravidez Infantil, prevê que meninas e mulheres que vierem a fazer o procedimento após 22 semanas de gestação, inclusive quando vítimas de estupro, terão penas de seis a 20 anos de reclusão.
Pela legislação atual, a interrupção da gravidez é permitida em casos de estupro, de risco à vida da mãe e de bebês anencefálicos. Não está previsto um tempo máximo da gestação para que seja realizado. O aborto é punido com penas que variam de um a três anos de prisão, quando provocado pela gestante; de um a quatro anos, quando médico ou outra pessoa provoque um aborto com o consentimento da gestante; e de três a dez anos, para quem provocar o aborto sem o aval da mulher.
Tramitação na Câmara
No dia 12 de junho, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aprovou o regime de urgência para a tramitação do projeto a toque de caixa. Em 23 segundos, o presidente da Casa legislativa considerou a urgência aprovada em votação simbólica – sem registro do voto de cada deputado no painel eletrônico. Em geral, a votação simbólica ocorre quando já existe acordo entre os parlamentares sobre o tema em pauta, o que não foi o caso.
A ação fez com que eclodissem manifestações por todo o país, tanto nas ruas, quanto nas redes, assim como notas contrárias emitidas por diversas entidades e movimentos sociais. A repercussão negativa fez que Lira recuasse e anunciasse, nesta terça-feira (18), que o PL 1904/2024 não será pautado em plenário antes do recesso legislativo, que acontece em um mês. Segundo ele, o tema será discutido anteriormente em uma comissão representativa, com participação de todos os partidos.
Na ocasião, o parlamentar disse que há possibilidade de mudança no texto durante a discussão. “Nada irá retroagir nos direitos já garantidos, e nada irá avançar que trate de qualquer dano às mulheres. Nunca foi e nunca será tema de discussão do colégio de líderes qualquer uma dessas pautas”, garantiu.
Mesmo com o recuo, o protesto nas ruas da capital gaúcha seguiu pedindo a saída de Lira do parlamento.
“Estamos aqui em mais uma das manifestações tão importantes para o arquivamento do PL 1904. Inclusive em Porto Alegre também tem um PL da vereadora Comandante Nadia (PL) que faz com que as vítimas de estupro ouçam os batimentos cardíacos dos fetos. Então o nosso pedido é pelo arquivamento no Congresso Nacional e que esse PL aqui na Câmara de Vereadores seja retirado”, destaca a vice-presidente da União Nacional de Estudantes, Niara Dy Luz.
Violência em números
Em 2022 o Brasil registrou o maior número de estupros da história, de acordo com a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 74.930 vítimas, sendo que mais da metade (56.820 mil casos) são estupros de vulnerável, ou seja, crimes praticados contra menores de 14 anos. Mais de 68% dos casos aconteceram dentro de casa. 86% dos estupradores de crianças de até 13 anos eram conhecidos das vítimas.
A cada 8 minutos, uma menina ou mulher foi estuprada no primeiro semestre de 2023 no Brasil, maior número da série iniciada em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Foram registrados 34 mil estupros e estupros de vulneráveis de meninas e mulheres de janeiro a junho, o que representa aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano passado.
De acordo com o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) desde 2007, 1.140 meninas de até 14 anos precisaram realizar o aborto legal no Brasil. Só no ano passado foram 154 meninas. Segundo reportagem do jornal O Globo,1.074 mulheres precisaram sair de suas cidades em 2023, em alguns casos até de seu estado, para conseguir realizar o aborto legal no Brasil. O número equivale a 36,2% de todos os 2.963 procedimentos registrados no país no ano passado.
Entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. O levantamento é da Gênero e Número, que analisou mais de 1,7 milhão de internações registradas no Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) como gravidez que termina em aborto.
“O Estado brasileiro deve garantir acesso a políticas de prevenção”
Em nota divulgada contra o PL nesta quinta-feira, a Fiocruz defende que o Estado brasileiro deve garantir acesso a políticas de prevenção, proteção e suporte às vítimas de violência e ao abuso sexual. “A gravidez em vítimas de estupro, sobretudo crianças, exige uma abordagem sensível e baseada em direitos para que os efeitos possam ser minimizados e que lhes sejam garantidas a chance de uma vida digna. Como instituição estratégica do Estado brasileiro para o fortalecimento do SUS, da democracia e das políticas de saúde pública, a Fiocruz posiciona-se de forma contrária à proposta trazida pelo PL 1904 e soma-se à mobilização da sociedade para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, afirma.
Conforme pontua a nota, estima-se que ocorram 820 mil casos de estupro por ano, sendo 80% de mulheres e apenas 4% detectados pelo SUS. “Destaca-se nas notificações de violência sexual no SUS que as maiores vítimas são crianças e adolescentes negras. A gravidez resultante de estupro é uma tragédia social de grande impacto na saúde física e mental, assim como na vida de estudo, laboral e de lazer, especialmente quando a vítima é uma criança.”
A nota completa pode ser conferida neste link
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira