A interpretação muito ampla pelo STF da Lei da Anistia desnatura a própria luta da sociedade civil, que foi liderada pelo movimento de mulheres
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A reescrita, a partir do uso de teoria e métodos feministas, é uma decisão mais consistente no desafio da aplicação do Direito – Foto: Freepik
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 (ADPF 153), sobre a Lei de Anistia, é o tema da reescrita sob a ótica feminista no episódio do Mulheres e Justiça desta semana. O convidado da professora Fabiana Severi é Caio Gracco Pinheiro Dias, também professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP.
Segundo o professor, o tema surgiu a partir de uma oficina de reescrita, que foi aceita por culminar com um momento político delicado vivido pelo Brasil em 2022, em que a ditadura estava sendo reabilitada, e também pela possibilidade de essa reescrita abrir a discussão sobre o sentido da anistia que foi concedida em 1979, interpretada de maneira muito ampla pelo STF, a ponto de desnaturar a própria luta da sociedade civil, que foi liderada pelo movimento de mulheres.
Caio Gracco Pinheiro Dias – Foto: Currículo Lattes
Para o professor, essa reescrita se torna feminista em função de quatro aspectos que marcam uma diferença grande em relação à decisão original. A primeira é a tentativa de uma leitura crítica do momento histórico da anistia. “Incluímos na nossa decisão a descrição dos crimes que o Estado brasileiro cometeu durante o regime de 64, ressaltando as suas dimensões não apenas de gênero, mas também de raça e de classe, o que foi sintomaticamente evitada nos votos dos ministros.” A segunda diferença, diz Dias, foi dar uma fundamentação teórico-jurídica mais sólida para a definição dos parâmetros de interpretação da Lei de Anistia. “Embora no voto do ministro relator esses parâmetros tenham sido discutidos de maneira bastante extensa, nos parece que a maneira escolhida pelo ministro relator para interpretar a Lei da Anistia acabou por negar o império da Constituição em relação à aplicação do direito.” Uma terceira diferença citada pelo pesquisador é que a reescrita dá uma atenção maior tanto aos diplomas normativos internacionais quanto à jurisprudência de organismos internacionais. E, por fim, nessa reescrita os pesquisadores dialogam mais com as contribuições que os amicus curiae (amigos da corte – em tradução livre) trouxeram para o processo. “Nos parece que não foram trabalhadas adequadamente nos votos dos ministros que se manifestaram no julgamento.”
Decisão consistente
Sobre os principais resultados, o professor diz que a reescrita, a partir do uso de teoria e métodos feministas, é uma decisão mais consistente no desafio da aplicação do Direito numa situação politicamente carregada. “A nossa reescrita é uma decisão que recusa uma leitura histórica superficial do momento de edição da Lei da Anistia, que parece ser a característica da reconstituição histórica feita pelos demais ministros, principalmente por aqueles que compuseram a maioria, votando pela impunidade dos crimes cometidos pelos agentes da ditadura.”
A decisão reescrita, além disso, enfatiza ele, tenta evitar uma discussão excessivamente abstrata e teórica, recuperando as dimensões concretas e os impactos que as ações que a maioria considerou anistiadas tiveram. Outro impacto do uso de métodos feministas na reescrita pode ser identificado na natureza, que a gente poderia denominar menos solipsista, da decisão, quando comparada com as decisões dos demais ministros, que parecem ser argumentações muito fechadas em si mesmas e que recusam diálogo com as contribuições das demais partes que intervieram durante o processo, em especial os amicus curiae.
O professor diz, ainda, que o resultado final parece ser o de uma decisão melhor, tanto do ponto de vista técnico-jurídico como político. “A reescrita mostrou que a decisão tomada pelo STF, em 2010, não era a única possível à luz do Direito, mas foi o resultado de uma opção política do tribunal. Tentamos mostrar com a nossa reescrita que essa opção poderia ter sido bem diferente daquela que ficou registrada no acórdão.”
Sobre o evento que apresentou a primeira versão dessa reescrita, que teve a presença da jornalista e ativista de direitos humanos e uma das vítimas torturadas durante a ditadura militar, Amelinha Teles, o professor diz que foi bastante especial e emocionante. A presença dela mostrou que, ao adotar o lema Anistia Nunca Mais, completa-se e termina o serviço que o STF começou, quando afirmou a bilateralidade da anistia. “Anistia bilateral significa igualar as condições daqueles que foram perseguidos, muitos deles sem qualquer razão com as condições daquele que os perseguiram com requintes de crueldade e sadismo. Quando nós gritamos ‘Anistia Nunca Mais’, também nos esquecemos que, se no futuro, viermos a viver sob um regime de exceção, um regime em que as pessoas serão perseguidas, vamos precisar lutar pela anistia para essas pessoas, da mesma maneira que Amelinha e tantas outras mulheres lutaram no final dos anos 70. Portanto, nós aprendemos que não devemos atribuir à anistia um valor negativo.”
O trabalho contou com a participação da própria professora Fabiana Cristina Severi e dos doutores em Direito pela USP, Patrícia Maeda e Welington Oliveira, além da graduada em Direito pela Unesp, Ana Paula Mittelmann Germer, e das graduandas em Direito pela FDRP Juliana Cristina Barbosa Silveira, Sarah Beatriz Mota dos Santos e Maria Eduarda Souza Porfírio.
A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira -
Apoio:acadêmicas Juliana Cristina Barbosa Silveira e Sarah Beatriz Mota dos Santos-FDRP
Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br