"Essas lutas e conquistas explicam por que esses movimentos se tornaram alvo das novas direitas e nos permitem, ao mesmo tempo, revalorizar suas experiências, refletir sobre suas falhas e projetar suas possibilidades", escreve Silvana Aiudi, especialista em questões de gênero. Trata regularmente sobre esse tema nas revistas Crisis, La Vanguardia Digital, Panamá e Literariedad. Colaborou no livro coletivo Por qué Llora esa Mujer.
O artigo é publicado em Nueva Sociedad, 03-10-2024.
Eis o artigo.
As lutas feministas na América Latina têm sido vitais durante a última década. Duas instâncias têm impulsionado o movimento: a luta contra os feminicídios, organizada sob a consigna "Ni Una Menos", e a Greve Internacional das Mulheres, Lésbicas, Travestis e Trans realizado pela primeira vez em 8 de março de 2017. Apesar da região enfrentar um contexto adverso, com a ascensão de governos conservadores, os feminismos continuam a definir uma agenda dinâmica e a obter resultados concretos.
Por momentos, nossos pés não caminham... dançam as muitas revoluções imaginadas, sonhadas, realizadas, derrotadas, reinventadas. Revoluções que se criam e recriam a partir do desejo, do prazer, da luta lado a lado com outras, outras, outros. — Claudia Korol
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O crescimento político do movimento feminista latino-americano é indiscutível. A amplitude de suas lutas, sua capacidade de articulação com os movimentos de diversidade e a potência de suas manifestações e demandas têm sido, durante a última década, uma das características mais notáveis do mapa regional. Embora, em alguns países, o movimento de mulheres tenha experimentado um ressurgimento mais significativo do que em outros, o feminismo se estabeleceu como um claro ator político regional, fato evidenciado na transnacionalização de suas lutas e nas diversas articulações que o caracterizaram na região. Seu impulso, que inicialmente derivou dos movimentos que se manifestaram contra o crescimento da violência de gênero e a favor da ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, adquiriu tal magnitude que eventos que antes pareciam impossíveis hoje fazem parte da realidade cotidiana. A conversa pública sobre questões de gênero, os debates em torno do aborto e as novas perspectivas jurídicas relativas aos direitos das mulheres não são mais eventos isolados e circunscritos aos movimentos feministas, mas se tornaram parte dos debates públicos que ultrapassaram as próprias organizações. Se a América Latina ainda não é, completamente, feminista, é evidente que o feminismo perpassou toda a região.
Mas, apesar do novo impulso do feminismo, a situação atual está longe de ser encorajadora. Os numerosos avanços ocorridos em diversos países em questões de gênero foram seguidos por uma reação de contornos conservadores. Essa reação, expressa em escala global, teve um efeito particularmente crítico na América Latina, pois as legislações progressistas conquistadas pelo movimento são sustentadas por acordos que ainda são muito frágeis. Os feminismos latino-americanos enfrentam, assim, um contexto caracterizado pelo ressurgimento patriarcal e pela reação autoritária. A questão é até que ponto a agenda feminista, focada na luta contra a violência de gênero, a favor de cotas de emprego, na busca da igualdade social e econômica e na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, pode hoje se constituir como um agente-chave que desafia as direitas radicais.
É evidente que os novos governos da direita latino-americana podem expressar, como os de Nayib Bukele em El Salvador ou Javier Milei na Argentina, perspectivas divergentes em diferentes questões, mas concordam em uma coisa – a luta política e cultural contra os movimentos feministas. A recente "eliminação" do que Bukele chamou de "ideologia de gênero" – que na verdade é a perspectiva de gênero – nos currículos educacionais em El Salvador, assim como a proibição do uso da chamada "linguagem inclusiva" na Argentina, deixam claro que esses atores políticos optaram por travar uma "batalha cultural" contra os movimentos feministas e de diversidade. A negação da própria existência da violência de gênero e da lacuna salarial entre homens e mulheres ou a atribuição dos problemas econômicos às próprias mulheres – como fez Milei – são apenas a ponta do iceberg. Na Argentina, chegou-se ao extremo de eliminar o Ministério da Mulher, Gêneros e Diversidade, e o presidente rotulou o aborto, legalizado pela Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, aprovada pelo Poder Legislativo em 2020, como um "crime agravado pelo vínculo". Esses fatos se replicam em países como Chile, onde o líder de extrema-direita José Antonio Kast chegou a dizer que o "feminismo radical" pretende "impor o direito de as crianças terem relações sexuais com adultos", ou no Uruguai, onde o líder do partido Cabildo Abierto, Guido Manini Ríos, afirmou que "a ideologia de gênero é um roteiro que nos aplicam para nos transformar em tribos". Em resumo, enquanto as lutas e avanços feministas conseguiram a institucionalização e a legislação das reivindicações, os atores da direita radical tentam eliminar o que já foi institucionalizado e regulamentado.
Diante dessa configuração, que pode ser definida como uma vingança dos patriarcas, mas que também mostra bordas mais complexas – como as dos movimentos "femonacionalistas" ou os dos ativismos de mulheres na direita radical – é conveniente, no entanto, revisar grande parte das conquistas do feminismo durante a última década. Essas lutas e conquistas explicam por que esses movimentos se tornaram alvo das novas direitas e nos permitem, ao mesmo tempo, revalorizar suas experiências, refletir sobre suas falhas e projetar suas possibilidades.
Dentro desse quadro de análise, é importante destacar dois momentos-chave para o feminismo latino-americano: o da primeira mobilização do movimento "Ni Una Menos" e o da Greve Internacional das Mulheres, Lésbicas, Travestis e Trans (2017), conhecido como #8M, que teve uma expansão continental e global. Ambos os momentos tiveram um forte impulso na Argentina, mas chamaram a atenção regional para a problemática dos feminicídios e das desigualdades decorrentes da lacuna salarial, expondo a necessidade de políticas públicas, como a interrupção voluntária da gravidez e a necessidade de educação sexual integral.
Ni Una Menos
Nascido na Argentina, o movimento "Ni Una Menos" teve sua primeira manifestação pública em 3 de junho de 2015. Fundamentado na necessidade de visibilizar os feminicídios e evidenciar a violência de gênero, o movimento surgiu após o assassinato de uma adolescente de 14 anos por seu namorado. Diante do choque, mais de 300.000 mulheres saíram às ruas em todo o país clamando "basta de feminicídios", em um fenômeno que, sem freios, se expandiu rapidamente por toda a região. A impressionante ocupação das ruas pelo movimento de mulheres rapidamente ganhou visibilidade no Uruguai – onde ocorreu uma manifestação no mesmo dia –, mas também no México – onde a primeira manifestação "Ni Una Menos" ocorreu em 5 de junho – e no Equador – onde as mulheres marcharam em 30 de julho. No ano seguinte, seguiram-se, com ímpeto semelhante, manifestações na Bolívia, Colômbia, Venezuela, Nicarágua e Chile. "Ni Una Menos" se estruturou, assim, como um coletivo de mulheres em escala regional. Foi precisamente essa escala que permitiu que, em cada uma das nações, exigisse o cumprimento das iniciativas decididas na Convenção de Belém do Pará (1995) em defesa da vida das mulheres nos campos físico, psicológico e sexual.
Na Argentina, o país onde o movimento nasceu, as mobilizações começaram a se repetir ano após ano, com base no objetivo de implementação real da Lei 26.485, que busca prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres nos ambientes em que desenvolvem seus relacionamentos interpessoais e pedir que o Estado assuma a responsabilidade. O país foi capaz de construir um feminismo popular e de massa que não apenas serviu como inspiração para muitos países da região, mas também conseguiu conquistas reais. Apenas um ano após a primeira mobilização de "Ni Una Menos", uma série de iniciativas de prevenção aos feminicídios começou a ser implementada sob um quadro regulatório de proteção dos direitos. As demandas do movimento eram, nesse sentido, muito concretas: a implementação do Plano Nacional de Ação para a Prevenção, Assistência e Erradicação da Violência contra as Mulheres (Lei 26.485), a criação de um Registro Oficial Único de vítimas de violência de gênero, a aplicação e a ampliação da Educação Sexual Integral em todos os níveis educacionais (Lei 26.150, aprovada em 2006) e a garantia da proteção das vítimas de violência com monitoramento eletrônico dos agressores.
Essa série de políticas teve um significado concreto para o movimento feminista, permitindo traduzir em termos práticos uma série de demandas que eram discutidas e atacadas por setores críticos do feminismo, que consideravam o movimento meramente teórico. Longe de promover apenas uma mudança cultural que discutisse as características da sociedade patriarcal, o feminismo mostrava que era capaz de articular sua posição crítica por meio de uma batalha dentro das instituições.
A própria demanda do movimento "Ni Una Menos", baseada no lema "¡Vivas nos queremos! El Estado es responsable" (Queremos viver! O Estado é responsável), colocava o foco na responsabilidade governamental e nas políticas públicas em relação aos feminicídios. O mesmo aconteceu em outras questões.
O crescimento do ativismo e a ampliação dos limites históricos do feminismo possibilitaram, ao mesmo tempo, uma rearticulação social do movimento que se materializou em redes de cuidados e vínculos que, longe de se limitarem às classes médias – como afirmaram muitos críticos do feminismo –, atravessaram a vida de diversos bairros populares.
Essa experiência político-militante se expandiu pelo continente, a tal ponto que o movimento "Ni Una Menos" adquiriu um caráter regional. Em seu trabalho de pesquisa "A América Latina se tingiu de feminista: a difusão do 'Ni Una Menos' da Argentina na região", Paola Romanelli mostrou como diferentes países do continente aderiram à iniciativa e facilitaram sua expansão. Chile e Uruguai foram, de acordo com os dados do trabalho de Romanelli, os que mais aderiram às iniciativas do coletivo, utilizando consignas semelhantes às da Argentina, enquanto Peru, Brasil e México fizeram o mesmo, mas recorrendo a lemas próprios para suas manifestações. No Chile, ativou-se o #MayoFeminista e o #16M, que reivindicavam responsabilização pela violência de gênero, educação não sexista, instrução e processo de denúncia; o Brasil convocou o #1J e #Portodaselas, e o Peru saiu às ruas em 2016 sob o #NiUnaMenos e #13A, concentrando suas reivindicações na violência física e no assédio nas ruas. No Peru, o foco da demanda foi o fim da violência machista e na segunda marcha (2017) foi proposta a descriminalização do aborto. Por sua vez, no México, as organizações denunciaram a violência contra as mulheres: na marcha participaram Norma Andrade, fundadora de "Nossas Filhas de Volta para Casa" em Ciudad Juárez. Em 2021, a Comissão Nacional de Direitos Humanos assinou um convênio com o "Ni Una Menos" México para promover e concretizar ações de atendimento às mulheres vítimas de violência de gênero.
As redes que foram se formando na região, o impacto da agenda e das manifestações nas ruas pressionaram para a criação de leis. Na Colômbia, por exemplo, em 2015, foi sancionada a Lei Rosa Elvira Cely, n. 1761, que tipifica o feminicídio como crime; em 2016, o Paraguai incorporou a lei 5.777, que tipifica o feminicídio e oferece proteção integral às vítimas de violência de gênero; em 2017, o Uruguai incorporou a Lei N°19.538, que tipifica o feminicídio como agravante de qualquer crime.
Além das leis e dos processos de institucionalização e regulamentação, é importante pensar nas estratégias que os movimentos feministas e de diversidade implementam no território para obter avanços concretos. Embora isso ainda seja uma dívida pendente, a importância do coletivo "Ni Una Menos" é e tem sido clara, na medida em que permitiu construir uma estratégia regional e global na luta contra os feminicídios. Essa consigna foi, sem dúvida, aquela que permitiu o desenvolvimento da segunda experiência exemplar do feminismo contemporâneo: o Greve Internacional das Mulheres, Lésbicas, Travestis e Trans. O #8M.
A greve e o aborto
A realização do Primeira Greve Internacional de Mulheres, Lésbicas, Travestis e Trans em 8 de março de 2017 marcou um novo marco do feminismo na região. O fato de essa mobilização global ter como antecedente o paro realizado no ano anterior na Argentina mostrava claramente que o continente estava se tornando a força motriz do movimento de mulheres e dissidências. A greve, que foi organizada internacionalmente por meio de assembleias de base e reuniões preparatórias em grupos de diferentes movimentos feministas e LGTBI+, pretendia visibilizar o trabalho das mulheres, ao mesmo tempo que evidenciava a importância das tarefas de cuidado. Nesse sentido, as demandas convocantes foram as que historicamente têm reunido os movimentos feministas: a luta contra a lacuna salarial, a visibilização do trabalho doméstico não remunerado, a crítica da divisão sexual do trabalho e a necessidade de cotas de trabalho para travestis e trans.
Após a revolta, que teve picos importantes na América Latina, em países como o Chile houve uma expansão do movimento. Lá, as feministas se reuniram sob o lema "Mais que Juanitas" e conseguiram articular propostas para que a nova Constituição garantisse uma ampliação dos direitos das mulheres. Na Colômbia, um país em que 90% das mulheres dedicam seu tempo ao trabalho doméstico não remunerado, a greve levou ao desenvolvimento de novas iniciativas nessa área pelo movimento feminista.
O desenvolvimento desta jornada de luta, que continua ano após ano, apontou, ao mesmo tempo, para um debate sobre a cultura patriarcal. A discussão sobre a "cultura do estupro" e o assédio nas ruas, assim como a necessidade de desmantelar as redes de tráfico, foram constantes nas manifestações.
Na Argentina, o país onde ocorreu a primeira greve feminista, as conquistas decorrentes desses processos de luta foram significativas. Em 2020, e após uma votação negativa em 2018, foi possível aprovar a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez e, dois anos depois, a Lei de Cotas de Trabalho Trans. Em termos regionais, a força do movimento feminista e sua luta concreta pelo aborto legal, seguro e gratuito deram frutos em países como a Colômbia, onde a prática foi descriminalizada em 2022, e no México, onde esse objetivo foi alcançado em 2023. Por sua vez, em países como o Brasil, começou-se a discutir a descriminalização até as 12 semanas de gestação. No entanto, o caminho ainda está longe de ser inteiramente auspicioso. Em El Salvador, o aborto ainda é penalizado, e em Guatemala, Panamá, Costa Rica, Peru e Venezuela, é permitido apenas se a saúde da mãe estiver em perigo (caso contrário, as leis preveem penas de prisão, dependendo do país). Panamá e Bolívia consideram a descriminalização em caso de estupro e até as 12 semanas de gestação.
Nos países onde o aborto é proibido ou penalizado, as mulheres e adolescentes o realizam de qualquer maneira de forma clandestina e insegura. Nessas nações, também não há leis de educação sexual integral ou, se houver, os governos das novas direitas tentam revogá-las. No Uruguai, a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez e a implementação da educação sexual integral nas escolas conseguiram reduzir as mortes por abortos clandestinos e é o país que apresenta a menor taxa de mortalidade materna na América Latina.
A resposta conservadora
A ampliação dos debates e das políticas feministas suscitaram uma poderosa reação das direitas. Em grande medida, o feminismo conseguiu, em diversos países, uma série de políticas de ampliação dos direitos das mulheres, mas, ao mesmo tempo, viu-se envolvido em debates políticos que implicaram tensões entre diferentes setores da sociedade.
Os ataques às políticas de gênero, a negação da violência de gênero e a revogação das políticas de igualdade de gênero ganharam, em diversos países, espaços importantes. Na Argentina, a reação às políticas do governo de Alberto Fernández foi imediata. A eliminação do Ministério da Mulher, Gêneros e Diversidade, a retirada da palavra "gênero" dos currículos educacionais e a nomeação de juízes retrógrados em tribunais fundamentais para julgar casos de violência de gênero foram, entre outros, claros sinais de uma mudança de rumo. No Chile, a tentativa de voltar ao governo de Sebastián Piñera (2010-2014; 2018-2022) aprofundou o descontentamento feminista. O governo de Piñera buscou reverter as políticas adotadas pelos governos de Michelle Bachelet (2006-2010; 2014-2018) e recrudesceu a violência estatal. O uso da repressão policial e a repressão judicial foram algumas das respostas que buscavam silenciar os protestos feministas.
Essa reação conservadora, que se expressa em escala global, também teve um impacto na América Latina. As críticas ao que foi chamado de "ideologia de gênero" tornaram-se centrais nos discursos de políticos de direita, que procuraram desacreditar as demandas feministas e de diversidade. O exemplo de Bolsonaro no Brasil é sintomático nesse sentido. Desde sua chegada ao poder em 2019, Bolsonaro protagonizou uma série de polêmicas contra o movimento feminista e LGBTI+. A nomeação de Damares Alves como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e de Eduardo Bolsonaro como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados – ambos com posições negacionistas sobre a violência de gênero e LGBTI+ – foi um claro sinal da mudança de rumo na política de direitos humanos no Brasil.
Além disso, a negação do aborto, que se tornou um dos pilares da agenda política da nova direita, também contribuiu para o descontentamento feminista. Em países como Argentina, Chile, México, Brasil e Colômbia, o debate sobre o aborto legal, seguro e gratuito tornou-se uma das principais questões de luta do movimento feminista. A legalização do aborto na Argentina em 2020 foi um dos avanços mais significativos do movimento feminista na região, mas também provocou uma forte reação conservadora. No México, onde o aborto foi legalizado em 2023, a reação foi semelhante. Os ataques à lei de aborto e à educação sexual integral se tornaram uma constante nos discursos políticos da nova direita.
Diante dessa configuração, que pode ser definida como uma vingança dos patriarcas, mas que também mostra bordas mais complexas – como as dos movimentos "femonacionalistas" ou os dos ativismos de mulheres na direita radical – é conveniente, no entanto, revisar grande parte das conquistas do feminismo durante a última década. Essas lutas e conquistas explicam por que esses movimentos se tornaram alvo das novas direitas e nos permitem, ao mesmo tempo, revalorizar suas experiências, refletir sobre suas falhas e projetar suas possibilidades.
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