A filósofa Alicia H. Puleo conta sua história pessoal com a filosofia e aborda, a partir de chaves ecofeministas, temas como a sensibilidade dos animais não humanos, o excesso neoliberal ou a crítica ao Iluminismo.
Instituto Humanitas Unisinos
10 Abril 2024
Filósofa, escritora, professora de Filosofia Moral e Política na Universidade de Valladolid, Alicia H. Puleo dirige há quatro anos o curso Ecofeminismo: Pensamento, Cultura e Práxis, que já formou mais de mil pessoas de diversos países. Ela dirige a coleção Feminismos da Editorial Cátedra desde 2014 e, em 2020, o Senado da República Argentina, por proposta da Rede de Defensores do Meio Ambiente e do Bem Viver, concedeu-lhe a Distinção Berta Cáceres por suas contribuições à filosofia ecofeminista. Por ocasião da sua visita à Galiza como palestrante da XL Semana Galega de Filosofia: Filosofia e Tempo, num painel intitulado Filosofia e Ecofeminismo em Tempos de Hybris, Alicia Puleo concedeu a entrevista abaixo em que abordou filosofia, ecofeminismo e Iluminismo.
Alicia Puleo (Foto: Wikipédia)
Puleo escreveu livros que hoje são referência como Filosofia, gênero e pensamento crítico, Ecofeminismo para outro mundo possível e Chaves ecofeministas para rebeldes que amam a Terra e os animais. Destacamos também seu mais recente livro, intitulado Ideais ilustrados: la Encyclopédie de Diderot, D'Alembert e Jaucourt.
A entrevista é de Nicolas Filgueiras, publicada por El Salto, 09-04-2020.
Eis a entrevista.
Quando começou sua história com a filosofia e o que isso significa para você?
Tudo começou bem cedo. Eu era uma grande leitora quando era pequena. Depois, comecei a me interessar pela filosofia através da literatura, principalmente pelos romances russos e franceses do fim do século XIX e início do século XX que estavam em minha casa. Estes livros abordavam temas como a existência da realidade e temas filosóficos que me chamaram a atenção. Depois comecei a ler algumas biografias, como a de Stefan Zweig sobre Erasmo de Roterdã, uma biografia que abriu a minha curiosidade sobre este tipo de figuras filosóficas. Já na adolescência comecei a ler os textos filosóficos de Platão, Sartre... Mas sem dúvida um livro que me marcou muito naquela época foi O segundo sexo, de Simone de Beauvoir.
Entendo a filosofia como pensamento crítico, como algo que nos permite olhar melhor: como um olhar diferente para a realidade que nos permite imaginar outros mundos possíveis.
Livro de Beauvoir importante no pensamento de Alicia Puleo (Foto: divulgação)
Você esteve na Semana Galega de Filosofia falando sobre filosofia e ecofeminismo em tempos de Hybris. Por que vivemos em tempos de arrogância?
Alicia Puleo - O conceito de arrogância refere-se a “excesso” e é central para o pensamento grego clássico. É um conceito muito útil para compreender a nossa situação atual. Vivemos tempos de excesso: o sistema em que nos encontramos, o capitalismo neoliberal, é uma arrogância que aumentou a crise ecológica, acelerando a esperança de vida não só dos seres humanos, mas também dos animais. Arrogância não é estabelecer limites, não admitir quaisquer limites.
Pensemos, por exemplo, no que é a produção pecuária industrial: uma verdadeira monstruosidade que consiste precisamente numa aceleração e no desrespeito dos ciclos de vida. O mesmo acontece com a agricultura e o uso intensivo de todos os tipos de pesticidas que aceleram os ciclos das plantas e cujo objetivo é aumentar constantemente os lucros. Temos outros exemplos de arrogância na ideia de felicidade baseada no consumo ou no clima pré-guerra que nos querem impor, o que poderá levar-nos à Terceira Guerra Mundial ou a um confronto entre potências nucleares. Para os gregos, o excesso era o pior erro que se poderia cometer.
Vamos com a outra palavra do título da sua apresentação: ecofeminismo. Você comentou que o feminismo e o ambientalismo são os dois movimentos sociais fundamentais do século XXI, e também afirmou que existe uma relação de enriquecimento mútuo entre os dois. O que é ecofeminismo? Que relação os dois termos têm entre si?
Alicia Puleo - A primeira coisa a notar é que o termo ecofeminismo foi utilizado na década de 1970 pela pensadora francesa Françoise d'Eaubonne. Naquela época, havia um ponto de ligação entre a preocupação do ambientalismo com o crescimento excessivo da população mundial e a luta feminista pelo direito das mulheres ao aborto e ao acesso a contraceptivos. Ela disse que uma situação como a que vivemos não teria sido alcançada se as mulheres não tivessem sido forçadas a ser mães ao longo da história. Esse foi o ponto de partida.
Mas é claro que há uma conexão entre muitos outros aspectos. Há uma relação de enriquecimento mútuo na medida em que o feminismo, através do ambientalismo, toma consciência tanto dos limites ecológicos do planeta como dos danos sofridos pelas mulheres devido à deterioração ambiental. Como a medicina ambiental demonstrou, embora todos os seres humanos ou todos os animais – humanos, desumanos – sejam vulneráveis aos pesticidas e outras toxinas ambientais, as mulheres são particularmente mais vulneráveis, especialmente as mulheres pobres e rurais no sul. Essa consciência é adquirida pelo feminismo graças ao ambientalismo.
O ambientalismo adquire do feminismo a consciência social da igualdade entre homens e mulheres, e a compreensão de certas dinâmicas de gênero que influenciam a crise ambiental. Toda uma série de comportamentos relacionados com os mandatos de género têm a ver com as dificuldades encontradas na mudança de estilos de vida. Podemos perceber isso no uso do carro, que para muitos é um sinal de poder, ou na indústria da moda feminina onde o que elas tentam vender está associado a formas de sedução que seguem normas de gênero. São dois exemplos de grande impacto ambiental e que estão relacionados com estereótipos de gênero.
Seria algo como dois processos que estão interligados? Um com o outro.
Alicia Puleo - Sim. São dois processos que estão interligados e, até recentemente, o feminismo e o ambientalismo não se reconheciam. O ecofeminismo começou a reconhecê-lo há muito tempo, mas sempre foi um ramo ou corrente minoritária dentro do feminismo. Agora está num processo de expansão e tanto no feminismo o ambientalismo está a ser ouvido como no ambientalismo o feminismo está a ser ouvido.
Françoise d'Eaubonne comentou que nos movimentos ambientalistas e no ativismo contra a crise climática costuma haver uma presença maior de mulheres.
Alicia Puleo - É verdade que as mulheres são a base do movimento. Mas a este respeito importa referir que muitas vezes, um pouco menos agora, aconteceu que enquanto os homens ocupavam cargos de representação do grupo, por exemplo falando em entrevistas, as mulheres eram responsáveis pelas tarefas e acabavam relegadas em termos de visibilidade. Muitos estudantes me disseram que isso também aconteceu em grupos ambientais menores. São aspectos que o feminismo vem denunciando e que estão sendo corrigidos.
Considerando que o ecofeminismo é sustentado por uma “hermenêutica da suspeita” e que interpreta que a subordinação do coletivo feminino está ligada a relações de dominação humana sobre a natureza não humana. A crítica ecofeminista mergulha nos fragmentos aparentemente desconexos da vida (corpos, alimentação, cultura, economia...) e propõe uma interpretação que coloca em primeiro plano que todas as coisas estão relacionadas entre si. Mas existe o risco de cair em posições essencialistas e/ou mistificadoras, por exemplo, sobre a “natureza”. Que existe algo como uma essência a preservar, imutável, fora de nós. O ecofeminismo é essencialismo? Postula algo como uma verdade última sobre o ser que deve ser revelada?
Alicia Puleo - Quando comecei a trabalhar no campo do ecofeminismo, uma das minhas preocupações era desenvolver um ecofeminismo que não fosse essencialista. Um ecofeminismo que não propõe que as mulheres estejam, em essência, mais próximas da natureza ou mais adequadas para a luta ambiental. Esta perspectiva baseia-se no fato de que todos os seres humanos são natureza e nós somos cultura, e que em tudo o que existe no nosso mundo há sempre algo de ambos.
Agora, em relação à naturalização das mulheres, eu diria que essa naturalização tem sido historicamente utilizada para subordiná-las. Ora, discordo de alguns dos discursos atuais sobre a natureza como cultura. Observei isso em alguns pensadores, até próximos do transumanismo. Dão origem à ideia de que não existe natureza, de que tudo é cultura, o que legitima a intervenção e a mercantilização do mundo natural.
Numa conferência, um participante me disse que uma lata de Coca-Cola deixada numa floresta é tão natural quanto a floresta. Segundo esta ideia, o fundamental para discernir o que é ou não natureza é se aquela coisa é ou não composta de matéria: tudo o que existe é composto de matéria e a matéria, transformada ou não, é matéria. Essa matéria faz parte do ser que existe. Então, chamaríamos qualquer coisa de natureza, até mesmo uma lata de refrigerante. Alguns destes discursos construtivistas são o prelúdio da irrupção totalmente mercantilizadora no mundo natural.
Para pensar a natureza, devemos considerar como ela atingiu seu estado após um longo processo de milhões de anos, além do equilíbrio ecossistêmico que alcançou, sempre frágil, com transformações, mas sem a mão do homem. Quando falamos da natureza neste sentido, como um fato e uma realidade e não num sentido mistificador, estamos a falar de saúde: porque como fazemos parte do ecossistema, se o ecossistema for destruído, ficamos doentes e existe a possibilidade da nossa própria morte.
Um de seus ramos de pesquisa está relacionado ao Iluminismo. Boa parte da esquerda e dos movimentos sociais tem uma percepção crítica negativa do Iluminismo. É muitas vezes entendido como sinônimo de metáforas mecanicistas e de brutalização, de exclusão das emoções, de dualismo cartesiano, de legitimação da industrialização e da modernidade capitalista. Qual a sua avaliação do projeto ilustrado? O ecofeminismo é um movimento esclarecido?
Alicia Puleo - Numa ocasião, convidei Val Plumwood, falecida filósofa ecofeminista australiana, para uma palestra no Complutense em que falamos sobre o Iluminismo. Eu disse a ela que concordava com ela em quase tudo, exceto em sua rejeição absoluta ao Iluminismo, e ela respondeu que eu também não a conhecia muito bem.
Frequentemente, um ou dois pensadores são escolhidos e nem a variedade do Iluminismo nem o que ele significava em seu contexto são abordados. O Iluminismo foi uma luta contra os poderes então instituídos, que eram, fundamentalmente, a união da Igreja e do Estado, e foi também um protesto contra a impossibilidade de expressar opiniões que não estivessem de acordo com o dogma. No Iluminismo francês, no qual me especializei, encontraremos autores como Diderot ou Maupertuis que criticaram os processos de colonização e que desenvolveram um materialismo pan-energetista que hoje regressa com o surgimento de novos materialismos. Estes foram precursores amplamente ignorados de muitas das nossas posições.
O que me chamou a atenção foi o que ele respondeu numa entrevista: “Em algumas obras do Iluminismo francês, chamaram-me a atenção certos indícios claros de que houve uma forte resistência feminina às ideias de Descartes sobre os animais. Rastreando textos da época, descobri que as mulheres eram repreendidas por dedicarem seus cuidados aos seus animais de estimação. Elas foram exortadas a se concentrarem apenas em sua família, e alguns filósofos até afirmaram que elas adoravam e defendiam os animais porque os 'autômatos' lisonjeavam seu ego com seu aparente apego incondicional". O que nos diz esta sensibilidade pelos animais? O nível moral de um povo pode ser medido pelo tratamento que dá aos animais?
A frase de Gandhi de que é possível medir o nível moral de um povo pelo tratamento dado aos animais parece-me bastante precisa e é um aspecto muitas vezes esquecido deste autor.
O fato de Descartes ter afirmado que os animais eram incapazes de sofrer, que eram simples autômatos, como robôs, e portanto não sofriam, facilitou o desenvolvimento de laboratórios de dissecação e permitiu a exploração total dos animais num momento histórico, o que constituiu uma espécie de protocapitalismo. Naquela época, muitas mulheres e o próprio Voltaire lutaram contra a ideia de Descartes e abriram caminho para uma crítica daquilo que em filosofia chamamos de abismo ontológico entre humanos e animais. Essa crítica envolveu a abertura à compaixão como uma capacidade que temos, como uma virtude.
Nem todas as mulheres têm essa sensibilidade em relação aos animais, mas estatisticamente é verdade que as mulheres são maioria reconhecida em todas as associações de defesa dos animais, ou mesmo nos cuidados domésticos com respeito aos animais de estimação. O que sugeri é que, nessa sensibilidade para com os animais, as mulheres estavam levando a cabo uma espécie de ataque de ciúmes contra o patriarcado. Uma greve de zelo porque estavam cumprindo, digamos, as exigências de cuidado que sempre foram feitas às mulheres, mas fazendo-o, em vez de atender aos objetos que lhes eram propostos (crianças, familiares doentes, idosos da família, marido...), com os seres que o patriarcado desprezava. Há aqui uma rebelião, embora nem sempre tenha sido entendida como tal pelas próprias mulheres. Uma rebelião contra as fileiras e contra a organização hierárquica que o patriarcado estabelece.
Atualmente, vemos muitos homens que começam a se abrir a essa sensibilidade, que considero dissidentes de gênero. São dissidentes de gênero no sentido de que se abriram a uma relação de cuidado com os animais: de cuidar de um ser que se considera, em princípio, para ser usado ou morto.
Com relação às emoções, não é verdade que o Iluminismo tenha sido um intelectualismo árido. O que era o intelectualismo, ou melhor, uma rejeição das emoções, era o racionalismo do século anterior. Então, o que se passa? Às vezes fala-se do Iluminismo unindo os dois séculos, o XVII e o XVIII, mas esta rejeição das emoções como perturbações da alma era mais típica do século XVII. No século XVIII, porém, desenvolveu-se um cultivo de emoções que levaria ao romantismo. Quando você começa a entrar em um período histórico de pensamento, percebe que ele não pode ser esquematizado tão facilmente e que às vezes existem ideias preconcebidas errôneas.
Afirmo que precisamos de um Iluminismo do Iluminismo. Em meu mais recente livro, intitulado Ilustrados ideais, tento fazer uma revisão crítica do Iluminismo para ver o que dele pode ser resgatado e o que pode ser útil para nós hoje.
Obra mais recente de Alicia Puleo (Foto: divulgação)
O ecofeminismo partilha esta ideia negativa do Iluminismo com outros movimentos de protesto, mas não há dúvida de que em última análise os conceitos de igualdade, liberdade e solidariedade, ou mesmo a abertura da ética para além de um antropocentrismo que limita tudo à humanidade, têm as suas raízes na ilustração. Por exemplo, as críticas ao tratamento dispensado aos animais começaram aí.
Durante o tratamento do câncer da minha avó, lembro como ela, ao chegar absolutamente exausta, presenciou o atropelamento do seu cachorro, que quase morreu instantaneamente. Lembro-me de minha avó chorando inconsolavelmente e dilacerada pela dor do animal. Muitos ao seu redor, especialmente os homens da família, diziam que “ele era apenas um cachorro”. Havia na atitude da minha avó um desafio ao abismo ontológico entre humanos e animais.
Claro que sim. E um mal-entendido: porque o mandato de gênero para os homens não é a exposição à vulnerabilidade, mas a outros tipos de normas.
Queria terminar perguntando sobre a relação entre o masculino e certas formas políticas e culturais autoritárias e neoliberais. Você comentou em uma entrevista:
O que está acontecendo neste momento histórico é que os modelos masculinos tradicionais baseados na competitividade, na violência e no risco (o guerreiro, o caçador, o corretor...) são pouco adequados para enfrentar os novos desafios milênio, em particular ao desafio de alcançar um mundo sustentável e não um planeta devastado no qual as gerações futuras não possam levar uma vida digna.
Com essa sua frase, não pude deixar de pensar que existe algum tipo de relação entre as mensagens do Llados Fitness ligando para fazer burpees às cinco da manhã, para trabalhar duro e ganhar muito dinheiro para ser melhor que o descanso, e as mensagens belicistas em torno da invasão russa da Ucrânia ou do extermínio em Gaza. Tenho a sensação de que em todos os elementos capilares da sociedade os guerreiros, os caçadores e os corretores estão a ascender como novas referências, e que estão a enviar uma mensagem clara: temos que nos preparar para a guerra, a pilhagem e a dominação uns dos outros. Como você interpreta esses discursos?
Pois bem, são muito preocupantes, claro, e sem dúvida são expressões de formas de pensar e de agir que correspondem à vontade de dominação patriarcal. No cerne do patriarcado o que encontramos é o mandato de dominação. Dominação que pode ser sobre os outros ou sobre o próprio corpo. Estes discursos são muito perigosos e infelizmente encontramos muitos deles através da internet. Fazem-me pensar naquela frase de Petra Kelly, a ecofeminista pacifista, que destacou que se não conseguíssemos mudar esta forma de ver a vida e o mundo, o patriarcado terminal nos levaria a uma catástrofe ecológica ou a uma guerra nuclear.
O ecofeminismo tem muito a dizer aqui em relação a estas visões do mundo. Lembra-nos que a ajuda mútua existe na natureza, que nem tudo é competição e que a felicidade não se alcança assim. Hoje precisamos de cuidado, solidariedade, irmandade e outra forma de entender a qualidade de vida. O que é chamado em ética de vida boa. Essas perspectivas se refletem em algumas visões de mundo dos Abya Yala, do mundo indígena na América Latina, como a Sumak Kawsay (boa vida), que coloca em primeiro plano a qualidade de vida, além de ter o que é necessário para viver, valorizar o que realmente vale: relacionamento com os outros, amizade e natureza.
Essas concepções me lembraram a visão epicurista. Coloco em chaves ecofeministas: o pensamento de Epicuro é semelhante a essas visões de felicidade e de vida boa, na medida em que sustentava que não são necessários objetos luxuosos para ser feliz. O que é necessário, além do básico, é a amizade e o cultivo do pensamento. E curtindo a natureza. Fazer o que os textos epicuristas exigem: sentar-se à beira de um rio na companhia de amigos e discutir com eles é um modelo de felicidade.
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