Fazendo Gênero começa hoje em Florianópolis, o Seminário Internacional Fazendo Gênero completa 30 anos de encontros e trocas acadêmicas, ativistas, artísticas e afetivas.
Em 2024 o Seminário Internacional Fazendo Gênero completa 30 anos de encontros e trocas acadêmicas, ativistas, artísticas e afetivas. Será uma data emblemática, pois voltaremos ao tão esperado reencontro presencial após a experiência da pandemia da Covid-19. Em decorrência do momento histórico que vive o planeta, o evento é intitulado Fazendo Gênero 13 contra o fim do mundo: anti-colonialismo, anti-fascismo e justiça climática.
As qualificações presentes no título expressam as pluralidades de desafios às diferentes existências de mulheres e populações LGBTQIAPN+, de como são atravessadas nos seus cotidianos locais e globais, seja pelo colorido dos ambientes ameaçados pelas mudanças climáticas, pelo colorido dos corpos ameaçados pelo poder fascista e racista, pelo colorido das lutas e visões pacíficas de um mundo possível para todas as espécies, humanas e não humanas ameaçados por violências espoliações e guerras.
Na contraparte negativa, insistimos em que o colonialismo implica uma visão de mundo imperialista, a partir um poder hegemônico que não é apenas econômico, mas que é sempre político, inclusive na forma como institui uma epistemologia homogênea e homogeneizante, que atropela os modos diversos de conhecer e habitar o mundo. Os processos coloniais de formação de nossa cultura do Sul global persistem como lastro sobre nossos corpos e nossas mentes, e por isso falamos do colonialismo como um poder que segue atuando sobre nossos saberes, e contra o qual somamos práticas anti-hegemônicas, anti-imperialistas (tanto para os antigos quanto para os novos imperialismos do Norte global) e insistentemente democráticas. Os mesmos processos colonialistas ocuparam nossos territórios com intuitos exploratórios, e conceberam nossos corpos humanos como passíveis de abuso junto com os corpos animais e os seus ambientes de vida. Não é à toa que possamos pensar que é uma mesma mentalidade que rege a exploração de minérios na Amazônia, a exploração dos corpos indígenas, e das mulheres indígenas em especial, e a longa e contínua exploração da natureza para fins econômicos. Também não é à toa que possamos falar de corpos-território, e das imbricações entre gênero, raça, sexualidade, classe e demais localizações etaristas e capacitistas, como ligadas às concepções instrumentalistas do sistema econômico capitalista. Para o ideário capitalista, tanto os corpos não-hegemônicos quanto a diversidade dos ecossistemas estão abertos ao abuso e ao assalto. É o capitalismo que serve de pano de fundo para as velhas, mas vigentes, explorações da colonização, e para as novas explorações neoliberais de subjugação ao lucro a todo custo.
Nos anos recentes, o sistema capitalista neoliberal tem tido um aliado político-cultural de peso: o fascismo e suas ideologias massificantes e uniformizantes. Para o fascismo, a pluralidade e a biodiversidade de corpos, de ideias e de desejos é uma ameaça ao seu conservadorismo e ao status de poder e privilégio centralizado em corpos masculinos brancos, que são concebidos como a norma em relação à qual todos os outros corpos são falhos e, portanto, (segundo sua lógica), exploráveis ou, no espectro final de sua violência linguística e prática, matáveis. No centro do conservadorismo fascista neoliberal o gênero está na ordem do dia, mas como desejo de controle: a suposta “ideologia de gênero” figura como ameaça aos seus ideais de domesticação dos corpos das mulheres em nome de uma cis-heteronormatividade compulsória. São levados de arrasto todos os outros corpos que não se enquadram nos padrões masculinos e femininos que ditam inclusive quem pode e quem não pode ocupar os lugares políticos democraticamente construídos em nossa sociedade. Dilma Rousseff e Marielle Franco são exemplos desse modo de operação mental e política em andamento.
Mas o fascismo capitalista neoliberal não é um fenômeno exclusivo do nosso território brasileiro. Ele tem se alastrado mundo afora, e é urgente que essa seja uma pauta dos nossos feminismos contemporâneos.
É urgente também que compreendamos os entrelaçamentos entre as ações colonialistas, imperialistas, capitalistas e neoliberais e a destruição de nossos ecossistemas. A emergência climática é uma crise que evidencia de modo pungente a interdependência entre práticas exploratórias e devastação do meio-ambiente. As práticas predatórias exercidas sobre ecossistemas diversos, seja para extração de matérias-primas não renováveis como o petróleo, seja para a criação de monoculturas em larga escala, em conjunto com o desmatamento, especulação imobiliária e urbanização desenfreada, retornam na forma de eventos climáticos extremos, mas também de eventos sanitários globais. A pandemia da Covid-19 é apenas mais um dos efeitos do completo desequilíbrio ambiental e da instrumentalização absoluta que temos feito de animais não humanos e seus habitats. Mas também aqui a população atingida está nas camadas mais vulneráveis e deixadas às margens da segurança habitacional, alimentar e sanitária. Podemos hoje falar de refugiados do clima, e temos visto populações marginalizadas, marcadas em seus corpos por gênero, classe e cor específicas, desalojadas de seus territórios e desprovidas de meios de subsistência em seus locais originais de vivência e trabalho. Mas é também aqui que reside o racismo ambiental, quando estes corpos são deixados às margens das cidades e zonas industriais e econômicas supostamente limpas, alocados junto com o lixo produzido por nossa sociedade capitalista perdulária. Os riscos ambientais atingem diferentemente as diferentes camadas da sociedade. E mulheres pobres, racializadas, são as primeiras a sofrer com os efeitos devastadores da erosão climática vigente.
É urgente, portanto, uma plataforma de enfrentamento ao fim mundo, que conjugue as práticas anti-colonialistas e imperialistas de longa data com as práticas anti-capitalistas, em suas tonalidades fascistas e neo liberais, e predatórias da natureza e dos animais não humanos. Uma plataforma que conjugue os movimentos ecofeministas e agroecológicos com os movimentos políticos acadêmicos de produção epistemológica diversa e ampliada, e que abrace a pluralidade também a partir das concepções pluriversais das mulheridades e vivências indígenas, estas profundamente dependentes da manutenção das florestas e de sua biodiversidade. Tudo isso implica ressignificar o modo como habitamos o mundo e as implicações de nossas ações e lutas cotidianas junto aos movimentos plurais de mulheres plurais. Mas implica também enfrentar comunitária e coletivamente as práticas e concepções vigentes e levadas a cabo pelas masculinidades tóxicas, oriundas e mantidas pelo patriarcado desde muito tempo, e que resultam ainda na ocupação dos espaços (de poder, mas de quaisquer espaços também) como uma ocupação violenta e belicosa.
É urgente, portanto, uma plataforma de enfrentamento ao fim do mundo mulherista e de pessoas feministas comprometidas com a justiça em seus vários aspectos afins à interdependência humana, animal e climática. Uma agenda contra o fim do mundo é uma agenda de cuidado mútuo e coletivo e de construção plural e democrática.