Quase lá: Morrer por um livro: Margherite Porete. Artigo de Anita Prati

"Vejo-a subir à fogueira, forte e serena, fechada num silêncio cheio não de desprezo, mas de dignidade. Talvez estivesse repetindo em seu pensamento as palavras de seu livro", escreve Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga”, em Castiglione delle StiviereItália, em artigo publicado por Settimana News, 09-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Marguerite PoreteEsplanade de la Libération está localizada no coração de Paris, a uma curta distância do Louvre e de Notre-Dame. O nome é novo, mas a praça é antiga: por duzentos anos, de 1803 a 2013, foi chamada Place de lHôtel-de-Ville; antes disso, e por muitos séculos a partir da época medieval, seu nome era Place de Grève. Aqui, na margem direita do Sena, abria-se uma praia pedregosa, um leito –greve, justamente, – que oferecia um local de desembarque fácil para as embarcações que se deslocavam ao longo do rio para o transporte de homens e mercadorias.

A praia, transformada em praça, tornou-se ao longo do tempo um local de animadas trocas comerciais e transações econômicas de vários tipos. Precisamente pela aglomeração de populares que se reuniam às centenas todos os dias na Place de Grève procurando um emprego, nasce a expressão faire grève, que em francês atual assumiu justamente o significado de “fazer greve”.

Pela sua amplitude e pelo dinamismo social que a distinguia, a partir do século XIII a Place de Grève foi escolhida pelos soberanos da França como palco ideal para gestos contundentes: em 17 de junho de 1244, na conclusão de um longo processo iniciado por Luís IX, o Santo, para verificar o conteúdo blasfemo e anticristão dos livros judaicos, milhares de manuscritos do Talmude vindos de todos os lugares da França foram solenemente queimados, na presença do clero e do povo, justamente na Place de Grève. Dos livros aos autores de livros, o passo é bem curto. Em 1º de junho de 1310, durante a semana de Pentecostes, na Place de Grève outra fogueira foi preparada e, desta vez, junto com o livro ofensivo foi queimado também seu autor. Aliás, sua autora.

O nome dela era Marguerite

Seu nome era Marguerite Porete, mas não ficamos sabendo disso por muitos anos. Condenada à fogueira por heresia, foram requisitadas e destruídas todas (ou quase todas) as cópias de seu Miroir des simples âmes, a voz e a identidade dessa mulher corajosa pareciam destinadas a se pulverizar e desaparecer completamente no choque com o silêncio prepotente que sempre quer silenciar as dissonâncias de quem está fora do coro. No entanto, algo daquela voz ao longo dos séculos continuou a ressoar: o Miroir, lido pelos contemporâneos Eckhart e Tauler e apreciado por Marguerite d'Angoulême, rainha de Navarra (1492-1549), protetora de homens de letras e humanistas, escritora e poetisa, quatrocentos anos após a morte de sua autora aparece internalizado na experiência de vida e de pensamento de Madame Guyon (1648-1717), figura emblemática do cristianismo do final do XVII, que reivindicou o direito de expressar de forma pessoal a própria espiritualidade e por isso foi condenada à prisão e ao esquecimento.

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Apesar da feroz ação de censura, o Miroir des simples âmes chegou até nós em treze manuscritos completos, que atestam sua tradução para o latim, francês médio, inglês e vernáculo italiano, de um original da Picárdia, agora perdido. A redescoberta teve início em 1867, quando a obra foi encontrada em um manuscrito italiano do século XIV na Biblioteca Nacional de Viena.

A primeira edição moderna impressa em inglês, datada de 1927, atribuía a obra a um "desconhecido místico francês do século XIII". Justamente nessa edição o Miroir foi lido por Simone Weil durante sua estada em Londres. Após a descoberta de dois outros manuscritos italianos e quatro latinos, a primeira edição italiana apareceu em 1940, sempre atribuída a esse místico francês "desconhecido" e "anônimo".

Como não relembrar o que Virginia Woolf escreve, com inteligência irônica e arrasadora, em seu imprescindível ensaio Um teto todo seu?

…Quando leio sobre uma bruxa jogada no rio, sobre uma mulher possuída por demônios, sobre uma parteira especialista em ervas, ou até mesmo sobre a existência da mãe de algum homem notável, penso que estamos no rastro de um romancista perdido, de um poeta forçado ao silêncio. (…) Eu poderia apostar que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, muitas vezes era uma mulher.

No caso do Miroir, “Anônimo” era de fato uma mulher. A autora foi identificada em 1944 por Romana Guarnieri, graças a uma versão latina intitulada Speculum animarum simplicium in voluntate et in desiderio commorantium, descoberto pela estudiosa em um códice da Biblioteca do Vaticano. Assim, Marguerite foi finalmente resgatada da escuridão do anonimato que a envolveu por séculos.

Nos anos seguintes, seguir-se-ão várias edições críticas da obra e versões modernas em francês, alemão e italiano. E depois, finalmente, em 1986, quase sete séculos após o início do processo que condenou Margueriteta Porete pro convicta et confessa ac pro lapsa in heresim seu pro heretica, seu livro foi acolhido no Corpus ChristianorumContinuatio Mediaevalis.

Herege e beguina

Mas quem era Marguerite Porete? Beguine clergesse, beguina culta – como as crônicas contemporâneas a definem.

Nascida em família nobre da região de Hennegau, atual província da Valônia, na Bélgica, por volta de 1250, Marguerite se deparou com o que durante séculos foi uma passagem obrigatória para as mulheres - a escolha, voluntária ou não, entre casamento ou convento - e optou por uma terceira via.

A experiência das beguinas e dos begardos, que se difundiu na região de Flandres entre os séculos XII e XIV, propunha dar um sopro espiritual à existência por meio de uma conversão radical ao Evangelho, que combinava oração e meditação das Escrituras com a assistência aos pobres e aos doentes.

Beguinas e begardos podiam viver sozinhos ou em pequenas comunidades, chamadas beguinários; sustentavam-se com o trabalho, não faziam votos e cultivavam uma atitude de grande liberdade interior perante as hierarquias eclesiásticas.

Numa época em que era inaceitável que as mulheres pensassem, escrevessem e pronunciassem palavras com sabor de liberdade em matéria de fé, religião e teologia, a beguina Marguerite Porete ousou pensar e escrever e, confiando ao Espelho das almas simples sua reflexão filosófica, ousou escolher sua língua materna – o picardo - em vez do latim como instrumento de comunicação.

Um primeiro processo diocesano, anunciado pelo bispo de CambraiGuy da Colmieu, no início do século XIV, terminou com a queima do manuscrito do Miroir na praça de Valenciennes, na presença da própria Marguerite, que foi avisada para não propiciar a leitura pública de seu livro ou deixar que outros o lessem. Como lembra Marco Vannini em sua introdução à recente edição italiana da obra:

Numa época em que não existia a imprensa e havia apenas os manuscritos, a condenação de um livro decretava sua extinção, ou quase, já que a Igreja praticamente detinha o monopólio da cultura e também podia exercer, de acordo com o poder político, a repressão do dissenso.

Mas Marguerite não obedeceu às imposições, pelo contrário, preparou uma nova edição da sua obra e apresentou-a a Jean de Chateau-Villain, bispo de Châlons-sur-Marne, confiante nas approbationes recebidas, no interim, de três respeitados homens da Igreja: o teólogo Godofredo de Fontainesdoctor venerandus; o monge cisterciense Dom Franco, da abadia de Villers, em Brabant, que havia dado seu apoio ao movimento das beguinas; e a um frater minor magni nominis, vitae et sanctitatisqui frater Johannes vocabatur que, a partir dos estudos de Romana Guarnieri, foi identificado com o doctor subtilis João Duns Escoto.

As approbationes não conseguiram salvaguardar nem o livro nem a autora. Jean de Chateau-Villain denunciou Marguerite ao novo bispo de Cambrai, Felipe de Marigny, que, após a abertura de um novo processo, a encaminhou ao Inquisidor Geral da Alta Lorena. Este, por sua vez, a denunciou ao Inquisidor Geral do Reino da França, o dominicano Guillaume Humbert de Paris, capelão do papa, confessor do rei Filipe IV, o Belo e figura de destaque no infame processo contra os Templários (1307 -1312).

Em meados do ano de 1308 Marguerite estava, portanto, em Paris. O Inquisidor tentou de todas as formas obter sua abjuração, mas ela não deu sinais de desistir; para dar um fundamento de credibilidade à acusação de heresia foi necessário constituir uma comissão formada por vinte e um teólogos da Universidade de Paris.

Em 11 de abril de 1309, na igreja parisiense de Saint-Mathurin, foi lida a sentença que exigia a destruição do livro tamquam hereticus et erroneus et heresum et errorum contentivus.

Como de praxe, foi concedido o prazo de um ano para Marguerite se arrepender e se retratar. Mas nada conseguiu abalar sua firmeza.

Em 31 de maio de 1310, domingo de Pentecostes, o tribunal eclesiástico emitiu a sentença definitiva e Marguerite, julgada relapsa, foi entregue ao braço secular. No dia seguinte, 1º de junho, a fogueira montada na Place de Grève queimou Marguerite junto com seu Miroir diante das mais altas autoridades civis e religiosas de Paris.

Aqueles eram os anos em que o Reino da França fazia seus primeiros testes substanciais como monarquia absolutista e a centralização do poder exigia a eliminação de qualquer voz crítica ou dissidente.

Após o longo conflito com o papa Bonifácio VIIIFilipe, o Belo, havia convencido o novo papa, o francês Clemente V, a transferir a sede papal para Avignon e a convocar um concílio na França.

Entre 1311 e 1312 realizou-se em Vienne o XV Concílio Ecumênico, que não só sancionou a supressão da Ordem dos Templários como, com o decreto Cum de quibusdam mulieribus beguinabus, também condenou o movimento das beguinas, acusadas de introduzir opiniões contrárias à religião católica a respeito de artigos de fé e sacramentos.

Marguerite havia morrido dois anos antes. Vejo-a subir à fogueira, forte e serena, fechada num silêncio cheio não de desprezo, mas de dignidade. Talvez estivesse repetindo em seu pensamento as palavras de seu livro.

Vocês que vão ler este livro

Se quiserem bem entendê-lo

Pensem no que vão dizer

Porque é difícil de entender;

Humildade vocês deverão ter

Que da Ciência é tesoureira

E das outras Virtudes Mãe.

Teólogos ou outros clérigos

Claro não entenderão,

Por mais claros que sejam seus engenhos,

Se não procederem em humildade,

E se Amor e Fé juntos

Não lhes permitir superar a Razão,

Eles, senhores da mansão.

A própria razão nos testemunha

No décimo terceiro capítulo

Deste livro, e sem vergonha,

Que Amor e Fé a fazem viver

E que deles não se livra,

Pois sobre ela têm senhoria,

E diante deles deve se humilhar.

Então humilhem suas ciências

Que sobre Razão são fundadas,

E coloquem toda confiança

Em quantas são pelo Amor dadas

E pela Fé iluminadas,

E assim entenderão este livro

Que faz viver a Alma de Amor.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/628565-morrer-por-um-livro-margherita-porete-artigo-de-anita-prati


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