Os massacres simultâneos praticados pela PM em São Paulo, Rio e Bahia não são frutos do acaso. A fascistização das forças policiais, cada vez mais autônomas, é uma ameaça real. Ao cruzar os braços, o MP atira gasolina à fogueira
Publicado 09/08/2023 às 14:25
O fim do último mês de julho deveria ter sido marcado pela triste lembrança dos 30 anos da Chacina da Candelária. Mas, no Brasil, muitas tristezas do passado resistem a ficar apenas na história. Por aqui, a história é todo dia.
Foi também no fim deste último julho que a PM de São Paulo começou a protagonizar uma de suas maiores chacinas do estado, começando pelo Guarujá. Na Bahia, 19 mortes pelas mãos da PM marcaram os quatro dias finais de julho, vitimando inclusive um adolescente de 13 anos. Agosto mal começou, e a PM carioca levou a vida de outro menino da mesma idade.
Saem governos, entram governos, seguimos com a certeza de que a Polícia Militar brasileira continua e continuará matando pessoas. Pior, com a politização das forças policiais, cada vez mais autônomas e com suas próprias bandeiras, a situação tende a piorar. Diante deste cenário, uma palavra se torna chave para a sociedade civil: controle.
No Brasil, para além dos governadores (cada vez mais enfraquecidos diante das próprias tropas) podemos dizer que existem, basicamente, três formas de controle sobre a atividade policial: as Corregedorias, as Ouvidorias e o Ministério Público. E é este último que gostaria de destacar nesta coluna.
É o artigo 129 da Constituição, em seu inciso VII, que diz que cabe ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial. Aliás, muitos devem se lembrar da decisão do STF, em 2020, de proibir operações policiais no Rio de Janeiro durante as medidas de combate à pandemia de covid. Na verdade, o STF nada mais fez do que invocar este artigo, como se dizendo que, a partir daquele momento, para a polícia realizar uma grande operação, ela deveria justificá-la ao Ministério Público.
Olhando para a situação de violência estatal permanente que vive o nosso país, é difícil compreender porque este chamado de responsabilidade ao Ministério Público se limitou ao Rio de Janeiro e, mesmo assim, apenas no período da pandemia. Não deveriam, os doutos promotores, cumprirem suas funções constitucionais a todo momento?
Nesta falta de controle constante, as polícias, sobretudo as militares, seguem colocando o terror periferias brasileiras afora. Agem como polícia ostensiva, como polícia investigativa, como acusação e como juiz, em execuções sumárias nas quais jovens, pretos e pobres não têm qualquer chance de absolvição.
O recente caso paulista é emblemático. Havendo o triste assassinato de um policial no Guarujá, a investigação não deveria caber apenas a órgãos com a atribuição de investigar naquela cidade, como a Polícia Civil e o próprio Ministério Público? Qual é então, de fato, a motivação para a chamada “Operação Escudo” da PM paulista, se a ela não cabe investigar civis? Qual a motivação pública para Tarcísio chancelar esta operação?
Em um Brasil em que as polícias se desenvolveram a partir do medo das elites ao verem cada vez mais pessoas negras circulando livremente pelas ruas, sabemos bem as reais motivações para tudo isso. Nada é realmente uma novidade. Nem mesmo os braços cruzados do Ministério Público diante de tanta barbárie.
Nos anos 1990, quando os policiais envolvidos no massacre do Carandiru eram julgados, o então Procurador de Justiça do caso justificou a chacina pelo “pavilhão estar cheio de assaltantes e assassinos perigosos que protegiam facções”. Foi este mesmo Procurador quem, aliás, adiou a perícia de confronto balístico que possibilitaria a individualização dos atos dos policiais. Após um tempo, os projéteis sumiram e a perícia nunca foi realizada. O processo se arrastou por 30 anos em cima deste fato.
Não se quer, aqui, jogar toda a responsabilidade da violência policial do país na falta de vontade do Ministério Público. Aliás, não quero, nem mesmo, dizer que o único caminho para melhorar passa por ele. Seria muito interessante, por exemplo, que as Corregedorias, responsáveis por punir disciplinarmente os policiais, se tornassem externas, ou seja, ocupadas por membros da sociedade civil, e não por outros policiais.
Igualmente interessante seria se as Ouvidorias, que em sua maioria são externas, pudessem exercer algum poder disciplinar sobre as polícias. Hoje, ao contrário, apesar de sua importância, elas conseguem pouco mais do que ser o único pingo de transparência das ações policiais para o restante da sociedade civil. E ainda assim, o fazem sob risco, vide as ameaças que já sofreu o atual Ouvidor de Polícia de São Paulo, Claudio da Silva, após as denúncias que revelou sobre a chacina do Guarujá.
Aliás, novamente, onde está o Ministério Público? Uma pergunta que se repetiu muitas vezes nos últimos anos quando o assunto é violência policial.
Lembro-me de certa vez, em 2016, em uma mesa de palestra organizada pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa, um promotor do qual não me lembro o nome fazia uma propaganda do projeto “10 Medidas Contra a Corrupção”, criado por promotores lavajatistas. Na ocasião, quando as perguntas foram abertas ao público, um certo homem perguntou quando o Ministério Público criaria as “10 Medidas Contra a Violência Policial”, já que esta era sua atribuição. Após os aplausos, o tal promotor, meio evasivo, se limitou a dizer que isto era algo em que o MP tinha que melhorar.
Não melhorou. Ouvidores seguem sofrendo ameaças, governadores se reúnem para saber se ainda têm algum controle sobre suas polícias, e o Ministério Público segue sem qualquer plano para fazê-lo, enquanto as polícias brasileiras já matam mais de 6 mil cidadãos e cidadãs por ano.
Desde 2018, policiais conseguiram uma representatividade inédita por todas as casas legislativas do Brasil. Entre o fim de 2022 e o começo de 2023, cruzaram os braços para botar fogo no país. Possuem bandeiras próprias e lideranças próprias, cada vez mais ao arrepio de qualquer controle externo que podemos imaginar. Uma polícia sem controle estatal e popular não tem outro nome que não seja milícia. E onde está o Ministério Público diante disso tudo?