Afetando principalmente mulheres, a fibromialgia tem impactos significativos no dia a dia dos pacientes e, apesar de não ter cura, pode ser controlada
Os fãs que se preparavam para assistir ao show de Lady Gaga na edição de 2017 do festival Rock in Rio tiveram uma surpresa desagradável: a cantora cancelou o show um dia antes do evento. O motivo que impediu Gaga de subir aos palcos no Brasil foi a fibromialgia, síndrome caracterizada por fortes dores contínuas e espalhadas pelo corpo.
"É um defeito de interpretação da dor no cérebro", explica Roberto Heymann, médico especialista na doença e membro da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR). Segundo ele, o mecanismo de resposta cerebral fica comprometido, transformando estímulos comuns em dor. "Às vezes, tato vira dor; temperatura vira dor."
A fibromialgia se manifesta a partir de uma predisposição genética e de um gatilho, que pode ser físico ou emocional. A perda de um ente querido, uma mudança brusca de vida, um acidente de carro, uma infecção viral, a lista de fatores que podem desencadear a síndrome é interminável. "Isso se vê claramente em alguns pacientes. Em outros, a gente não consegue saber qual foi o gatilho", conta Heymann.
Qualquer pessoa, de qualquer idade, pode desenvolver a síndrome. No entanto, o grupo amplamente mais atingido é o de mulheres entre 20 e 50 anos de idade. Os motivos dessa predominância ainda não são claros para a medicina. "Existem suspeitas sobre questões hormonais e de funcionamento do sistema de dor, mas ainda não há comprovação", afirma Ana Paula Gomides, médica membro da Sociedade de Reumatologia de Brasília.
O número de pessoas que sofrem com a síndrome no Brasil e no mundo ainda é incerto. As estimativas de organizações como a SBR dão conta de cerca de 2% a 3% da população brasileira afetada hoje pela fibromialgia, segundo Heymann. Já Ana Paula Gomides coloca o número no patamar dos 3% a 5%. "A gente não tem dados precisos. São poucas estatísticas no Brasil", justifica a reumatologista.
O diagnóstico é clínico, ou seja, não há exames para comprovar a existência da síndrome. Não há cura para a fibromialgia hoje, porém, com os tratamentos, é possível buscar a estabilização dos sintomas e manter uma vida normal.
Sintomas
O principal sintoma da fibromialgia é a dor. Ela se espalha pelo corpo e acontece, principalmente, nos músculos e nas articulações. A intensidade varia de paciente a paciente, e também pode piorar em momentos de crises agudas.
A má qualidade do sono e a fadiga completam a lista de sintomas mais proeminentes. Ambas também podem se apresentar em diferentes níveis de intensidade.
Menos comuns, mas ainda bastante relevantes, ansiedade, depressão, problemas de memória e concentração podem aparecer como consequência dos principais sintomas da fibromialgia.
Primeiros sinais
Dores contínuas há mais de três meses são sinal de alerta para um possível caso de fibromialgia, segundo Roberto Heymann, médico especialista na doença e membro da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR). Má qualidade do sono e cansaço excessivo acompanhados da dor devem elevar o nível de atenção. Há casos em que a síndrome evolui lentamente, ao longo de meses ou anos. Em outros, pode chegar subitamente.
Tratamento
“O paciente que não faz atividade física não está tratando a fibromialgia”, adverte Heymann. Ele explica que as atividades devem ser adaptadas às condições físicas do paciente, mas que a saída não medicamentosa ainda é a mais importante no tratamento da síndrome, já que os remédios ajudam, mas não resolvem o problema. “Tem que se mexer, mesmo que seja o mínimo possível. Para outros, aquilo pode não ser mexer. Para ele (paciente), vai ser considerado como início de atividade física.”
A regulação do sono também é essencial no processo, segundo o especialista. “O objetivo do tratamento é minimizar a dor a um nível que não atrapalhe o paciente no dia a dia.”
Sobre o cannabis, Heymann afirma que “por enquanto, não existe uma indicação” de bons resultados na literatura médica para a fibromialgia, mas não descarta o uso, no futuro, caso haja uma atualização nos estudos.
Lei polêmica
No último dia 17 de outubro, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou um projeto de lei que
classifica pacientes de fibromialgia como pessoas com deficiência, dando acesso a todos os
direitos que essa população usufrui. “Não faz sentido”, criticou Roberto Heymann. “A grande
maioria (dos pacientes) não tem fibromialgia grave. E raríssimos têm deficiência.”
Ana Paula Gomides explica que “a questão é que a lei não consegue fazer a diferenciação entre os casos leves e os graves da síndrome. E completa: “A maioria dos reumatologistas foi meio que pego de surpresa. Porque a gente tem várias outras doenças reumáticas que não são contempladas (pela lei)”.
Segundo o texto do projeto, o intuito é “assegurar a participação plena e efetiva deste grupo na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas, sem qualquer restrição ou preconceito aos seus impedimentos e limitações físicas”. O texto agora espera sanção do governador do DF.
Palavra do especialista
Pelo fato de os sintomas principais serem parecidos com outras doenças, o diagnóstico de fibromialgia é difícil de ser feito?
Não é fácil, porque se parece com outras doenças e não existe nenhum exame que comprove a síndrome. A fibromialgia é uma desregulação do sistema de dor do nosso corpo, principalmente a nível do cérebro. E a gente ainda não tem um exame que consiga mostrar isso. Então, outras doenças podem se confundir. Às vezes, acontece o diagnóstico de fibromialgia que não é fibromialgia. (Poderia ser) outra doença reumática, um problema hormonal, alteração de tireoide, que também causam esses sintomas. E existe o contrário: pessoas que têm dor, que têm cansaço e acham que não é nada, mas, na verdade, têm uma
fibromialgia que precisavam tratar. Por isso, é importante fazer uma avaliação, preferencialmente com o reumatologista, que é o especialista que cuida dessas doenças que geram dor.
Como o dia a dia de um paciente com fibromialgia é afetado?
É importante desmistificar porque, às vezes, o paciente fica com uma visão de que vai ficar totalmente incapacitado, e isso, na verdade, é muito variável. Mas, no geral, tanto a dor quanto a fadiga incomodam e atrapalham a qualidade de vida do paciente em todos os aspectos. No trabalho, nas atividades do dia a dia, na questão da concentração, nas atividades de estudo e, consequentemente, acaba impactando os relacionamentos (interpessoais), já que a pessoa está sempre cansada, indisposta, com dor. Então, é muito comum que os pacientes relatem também esses prejuízos de socialização e convivência.
O sistema público de saúde está preparado para atender os pacientes de fibromialgia?
É um grande problema que nós temos. Porque, na rede pública, tem poucos locais com serviços de reumatologia. Os pacientes têm muito pouco acesso, a gente precisa realmente divulgar sobre a necessidade de ampliar vagas na rede pública. Também são poucas as medicações para fibromialgia disponíveis (no SUS). É algo que, como Sociedade de Reumatologia, a gente vem batalhando, brigando, tentando negociar junto aos órgãos públicos. E, pior ainda, aquele tratamento não farmacológico — com fisioterapeuta, psicólogo — é muito difícil de conseguir para as pessoas com fibromialgia e faz toda a diferença. Isso é um problemão.
Ana Paula Gomides é médica reumatologista e membro da Sociedade de Reumatologia de Brasília.
fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/revista-do-correio/2023/10/5136636-uma-dor-persistente-entenda-os-impactos-da-fibromialgia-uma-doenca-sem-cura.html