Pastora adverte: aliança com “pequenas igrejas” pentecostais, buscada pelo governo, é tiro no pé. Elas pregam individualismo capitalista radical e intolerância religiosa. Em breve, darão as costas à esquerda. E há outras maneiras de diálogo com as periferias…
Por Pastora Lusmarina Garcia, no Brasil 247
Querido Lula, querida Gleisi,
Dirijo-me a vocês na semana do 08 de janeiro desejando que 2024 abra para nós a possibilidade de construirmos, a partir das decisões tomadas no presente, um futuro no qual consigamos inscrever a nossa esperança de um país mais igualitário, uma sociedade mais acolhedora com respeito à sua pluralidade e ao sistema democrático, e uma humanidade mais comprometida com a paz, a justiça e a solidariedade.
Tenho acompanhado as notícias que anunciam a sua preocupação, Lula, assim como a preocupação do PT com a questão evangélica. Tenho igualmente sabido, pelos meios de comunicação, sobre as ações do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome que, no dia 27/11/2023, estabeleceu um protocolo de intenções com 27 segmentos de igrejas evangélicas e no dia 14/12/2023 encontrou-se com as suas lideranças. Os dois eventos foram realizados na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a imprensa, o protocolo do Ministério do Desenvolvimento visa permitir a atuação das igrejas em comunidades periféricas, facilitando o encaminhamento de programas sociais como o Bolsa Família, benefícios previdenciários, o “Minha Casa, Minha Vida”, a implementação do Cozinha Solidária, etc. Tal protocolo de intenções já foi assinado, e uma reunião técnica com líderes evangélicos está agendada para o dia 14 de janeiro próximo.
Eu moro na cidade do Rio de Janeiro. Sou pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e militante pelo PT desde 1987. Faço parte de uma rede de pastores, pastoras e lideranças leigas de diferentes igrejas, que atuam em áreas periféricas e têm sido relevantes no enfrentamento às vulnerabilidades que afligem parcelas da população. Essas pessoas, assim como eu, têm sido companheiros e companheiras fiéis na luta em defesa do PT, da Presidenta Dilma Rousseff, sua, Lula, e de um projeto de país que foi interrompido pelo avanço da extrema direita, mas que, pelo esforço de todos nós, conseguiu ser retomado com a sua eleição em 2022.
Nenhuma das lideranças mencionadas no parágrafo acima foi convidada a participar dos eventos com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, e tampouco suas organizações foram incluídas no protocolo. Parte dessas lideranças e suas igrejas é ligada ao movimento ecumênico, parte não, mas todas pertencem ao que tem sido chamado de campo progressista. Como é sabido, as igrejas que compõem o movimento ecumênico e aquelas do campo progressista são, historicamente, as que lutam por democracia, por justiça social, pelos direitos humanos e, consequentemente, as que defendem os governos populares de esquerda ao redor do mundo, incluindo a América Latina e o Brasil.
As lutas que travamos no campo religioso na última década em nosso país tiveram, invariavelmente, em pessoas e organizações desse campo, baluartes imprescindíveis. Por exemplo: a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil pronunciou-se, institucionalmente, abertamente, contra o impeachment da Presidenta Dilma chamando-o de golpe, contra a Lava Jato e a prisão do Presidente Lula. Com linguagem mais moderada, mas ainda em favor das regras democráticas, do devido processo legal e outras conquistas civilizatórias, pronunciaram-se a Igreja Evangélica de Confissão Luterana, a Presbiteriana Unida, a Católica Romana, a Aliança dos Batistas, dentre outras. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs foi a organização que ofereceu apoio institucional para a articulação feita por nós para as visitas da Presidenta Dilma Rousseff (2017) e do Presidente Lula (2020) ao Centro Ecumênico de Genebra para encontrar-se com as lideranças do Conselho Mundial de Igrejas, da Federação Luterana Mundial, da Aliança da Ação das Igrejas em Conjunto (ACT Alliance) e da Aliança Mundial das Igrejas Reformadas.
No entanto, percebemos já no contexto da campanha à Presidência da República, um certo afastamento por parte da condução da campanha com relação ao campo ecumênico. No decorrer de 2023, essa percepção se reforçou, pois nenhuma tentativa nossa de estabelecer um diálogo sério sobre a questão religiosa no Brasil encontrou espaço no âmbito do governo. Em janeiro de 2023 propusemos a formação de uma Mesa de Diálogo de caráter inter-religioso no âmbito da Secretaria Geral da Presidência da República para estabelecermos estratégias relativamente à questão religiosa no país, o que não se efetivou até o momento.
Temos ouvido pela imprensa que a prioridade do governo é trabalhar com “pequenas igrejas”. E que está em andamento o projeto de legalização de igrejas autônomas para que possam receber recursos para ações sociais.
Gostaria de ponderar o seguinte:
1. ‘As “pequenas igrejas” às quais se está fazendo referência são, majoritariamente, igrejas de caráter neopentecostal, que articulam um discurso religioso baseado numa perspectiva teológica construída a partir do fundamentalismo cristão. A maioria das lideranças dessas igrejas não possui formação teológica, e se possui, é baseada numa matriz de pensamento e num método hermenêutico radicado nas escolas ultraconservadoras ligadas, em sua maioria, à ultradireita estadunidense. Ou seja, o discurso é formatado a partir do capitalismo (Teologia da Prosperidade e anticomunismo), do patriarcalismo (que se traduz em compreensões e práticas de submissão das mulheres e degrada-se, não raro, em misoginia e em diferentes formas de violência), da intolerância com respeito às diferenças (seja ela religiosa, comportamental, política ou de gênero), da branquitude (a matriz do pensamento é racista, embora num contexto de maioria negra, como o Brasil, o discurso tenha sido adaptado) e da espiritualização de tudo (que é a negação dos processos históricos, ou seja, tudo o que ocorre provém da vontade de Deus, de maneira que as políticas públicas de distribuição de renda, por exemplo, não são associadas a uma decisão política de governo, mas à vontade de Deus, que até “usa os inimigos” para beneficiar o seu povo). Essa maneira de pensar despolitiza os fiéis e é refratária àquilo que os governos de esquerda buscam construir como sociedade. Não se vincula as melhorias de vida com as políticas públicas de Estado porque isso implicaria em romper com a matriz de pensamento que sustenta a Teologia da Prosperidade, que é baseada na meritocracia, no individualismo e no combate ao inimigo. Isso significa que o atual governo deve afastar-se ou negligenciar as igrejas? Não, ao contrário. O governo deve dialogar com as igrejas, pequenas e grandes, assim como com todas as expressões religiosas que formam o país, pois todas têm a sua contribuição a oferecer. É importante lembrar que o Brasil não é evangélico; o Brasil é laico e plural em termos religiosos.
2. Os governos anteriores do PT estabeleceram alianças com as grandes igrejas neopentecostais. Ao fazê-lo, fortaleceram tais igrejas. Agora, parece que o governo busca estabelecer aliança com as pequenas igrejas neopentecostais. Ao fazê-lo, irá fortalecê-las também. As primeiras abandonaram Dilma, Lula e o PT tão logo os movimentos de desconstrução democrática tiveram início. As segundas, não terão destino diferente. Por quê? Porque a matriz do pensamento teológico é a mesma; a matriz do pensamento teológico opõe-se à noção de bem público, participação igualitária, coletividade, pluralidade.
3. Como se muda isso? No âmbito geral, com política econômica distributiva e política social de inclusão. Em termos específicos, há diferentes iniciativas que podem surtir algum efeito, como por exemplo, uma estratégia de comunicação direcionada. No entanto, essa realidade só pode ser de fato transformada com o estabelecimento de critérios tanto para a abertura de igrejas quanto para a formação das lideranças.
Entendo que o partido se mova por uma lógica eleitoral. Mas, a lógica eleitoral, que tem caráter de mais curto prazo, não pode prescindir da lógica de transformação social e nem relativizar o caráter laico do Estado. E para isso, a construção do pensamento crítico é fundamental.
O pensamento crítico precisa estar na base tanto de uma estratégia na área de comunicação quanto na formação educacional. Não me parece que haverá efetividade em uma campanha de comunicação direcionada aos evangélicos e às evangélicas se os conteúdos fundamentalistas não forem enfrentados. E para enfrentá-los, é preciso incorporar teólogos e teólogas que tenham a capacidade de elaborar argumentos bíblico-teológicos que promovam a releitura do arcabouço conceitual.
Outra forma de enfrentamento é a constituição de Mesas de Diálogo plurais, inter-religiosas, que incluam também pequenas igrejas autônomas, afinal, elas são legítimas. No entanto, o Estado deve garantir e zelar por princípios que contribuam com o reconhecimento mútuo entre as diferentes tradições de fé. Tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil oferecem arcabouço jurídico e político relevantes para orientar o estabelecimento de tais mesas plurais de diálogo. Não é papel do Estado fortalecer este ou aquele segmento religioso sob o argumento de que “está nas periferias”. O que está nas periferias é a desigualdade, a violência, o desemprego, a desesperança. Para enfrentar isso, todos os segmentos religiosos são parceiros legítimos.
4. Naquilo que diz respeito à formação, entendo que o Ministério da Educação deveria ser o canal de estabelecimento de critérios curriculares para a formação teológica a partir do pensamento crítico, ou seja, os currículos dos cursos de teologia ou ciências da religião precisam incorporar o método histórico-crítico como critério de formação. Para tal, faz-se necessário implementar avaliações sólidas dos currículos dos cursos de teologia reconhecidos pelo MEC. O Brasil não permite que a medicina, a advocacia, a antropologia ou a sociologia sejam exercidas sem que os profissionais da área passem por um curso de formação criterioso; por que os pastores e as pastoras podem? Pastores e pastoras são agentes da construção da consciência das pessoas, por isso, é imprescindível que sejam bem formados e formadas. Tal formação não pode continuar utilizando uma matriz fundamentalista. Ademais, cursos online de três meses são insuficientes para que alguém possa ser habilitado para o exercício do pastorado ou para a condução de uma organização articuladora da subjetividade das pessoas.
Entendo que a questão da formação é variável nas diferentes tradições religiosas. Há religiões que utilizam a tradição oral como método formativo. Mas o cristianismo não. O cristianismo tem, historicamente, primado pela educação teológica de seus quadros e de suas lideranças. Então, para o funcionamento de igrejas é preciso haver lideranças que possuam formação adequada. Abrir mão desses critérios é adentrar um regime de permissividade melindroso que, a meu ver, possibilitará o retorno de um discurso religioso potencializado e de uma prática religiosa aprofundada de extrema-direita tão logo os botões do autoritarismo latente na sociedade ou do messianismo eleitoral de direita sejam acionados.
Minha proposta é a criação de um comitê composto por teólogos e teólogas que fará a revisão dos currículos dos cursos de formação a serem reconhecidos pelo MEC e que a formação adequada das lideranças seja um critério para a abertura de igrejas.
5. Ao estabelecer um acordo/protocolo milionário com algumas igrejas cujos nomes não foram publicizados, o governo investe numa lógica clientelista por meio de um mecanismo que não assegura a transparência. O clientelismo pode produzir resultados, mas tão somente na medida em que os “clientes” estejam satisfeitos. Não me parece que a relação das “pequenas igrejas” com o governo adquirirá consistência, posto que não há história prévia, não há lastro relacional, não há compromisso anterior à oferta do acordo/protocolo. Antevejo uma relação episódica, provisória, enquanto houver recursos. Talvez isso se traduza em benefício eleitoral, o que será positivo. Mas eu me pergunto: e os outros grupos religiosos? Não é o Estado laico? Se o governo estabelece acordo com um segmento religioso, precisaria, no mínimo, estabelecer com os demais. Por que os terreiros de candomblé, que estão nas periferias desde o início, não participam do acordo? Haverá um acordo específico para eles? E os grupos de umbanda, os espíritas, os budistas? E os católicos e protestantes que também estão nas periferias e fazem trabalho diaconal? Em um Estado laico, não cabe ao governo destinar dinheiro para este ou aquele segmento religioso com a exclusão dos demais. As parcerias devem ser isonômicas. Se não, como falar de Estado laico? Em que bases a laicidade do Estado se sustenta? Ademais, não há pesquisa e dados estatísticos que comprovem que “pequenas igrejas” e/ou igrejas autônomas realmente provocam impactos sociais mais positivos do que os centros de assistência social confessionais regulares e as casas de terreiros, por exemplo.
Nós lutamos tanto denunciando a presença massiva de evangélicos e católicos fundamentalistas no governo de Jair Bolsonaro, e agora repetimos a receita, com mais discrição talvez, mas ainda privilegiando e legitimando tais grupos. Fazemos isto ao mesmo tempo em que excluímos companheiros e companheiras de longa caminhada.
Concluo dizendo que a construção de uma cultura realmente democrática no Brasil, capaz de afugentar o extremismo de direita ainda tão presente em nossa sociedade, passa pelo debate amplo da questão religiosa, que precisa ter um espaço institucional de caráter inter-religioso no âmbito do governo. Este debate deve ter a preocupação de construir uma cultura de respeito à diversidade, um ambiente plural, onde a fé seja um instrumento para a promoção da paz, da justiça e da solidariedade.
Espero que esta mensagem chegue até vocês como uma contribuição fraterna de quem ama o PT e acredita na sua capacidade de promover as transformações sociais que o Brasil tanto precisa.
Estou à disposição para diálogos que se façam necessários.
Grata,
Lusmarina Campos Garcia é teóloga e pastora luterana, doutora em direito pela UFRJ e pesquisadora de direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ.