O evento reuniu membros da comunidade acadêmica e dos movimentos sociais, junto àqueles que tiveram uma participação ativa nos processos de independência do continente africano e nas lutas de libertação do domínio colonial, que, por ocasião do evento, explanaram suas experiências das mais diversas formas.
Por Núbia Aguilar, doutoranda, Maria Cristina Cortez Wissenbach, professora, Yaracê Morena, doutoranda, e outros autores*, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Núbia Aguilar – Foto: Arquivo pessoal
Maria Cristina Cortez Wissenbach – Foto: Arquivo pessoal
Yaracê Morena – Foto: Arquivo pessoal
Raça, gênero, intelectualidade, resistências históricas e experiências de ensino, como a importância da Lei 10.639/03 para a expansão dos estudos africanos no cenário brasileiro, foram assuntos abordados e que incentivaram uma discussão profícua. De um modo geral, o contato com a Universidade de La Habana apresentou referências conhecidas e outras às quais estamos relativamente desacostumados. Uma hierarquia mais presente, com a manutenção das saudações revolucionárias e um caráter ideológico mais patente que, de certa forma, deixamos de lado – ou que para nós, acadêmicos da periferia da sociedade de consumo, tem-se revestido de outras direções e sentidos. Mas, entremeios as proximidades e estranhamentos, vale a pena destacar o interesse em se discutir possibilidades de intercâmbios institucionais e temas da atualidade vistos a partir da comprometida atuação de pesquisadoras como Yulexis Almeida Junco, decana da Faculdad de História, Letras e Sociologia, e a presidenta da cátedra Yanelexy Soto Soler, ambas fundamentais para a ocorrência do evento.
Os laços se estreitaram não só pela inserção no ambiente universitário, mas também pela história vivida nas cidades. Habana (ou Havana mediante tradução), a capital, nos conta narrativas instigantes, por suas ruas, prédios, carros e feições cidadãs. Andar por Habana é de certa forma penetrar em estágios e dimensões históricas distintas que convivem indiscretamente e, de algum modo, sem pudor. Se as construções magníficas de Habana Vieja, com suas abóbadas e pilares lustrosos, nos remetem aos tempos da opulência colonial, transvestidos agora em pontos de turismo e de exibição, as velhas ruas movimentadas por transeuntes, vendas de alimentos e veículos antigos desaguam também nas grandes praças que evocam os signos e as memórias da revolução na qual ainda se deposita esperanças de mudanças e de justiça social.
No entanto, Trinidad, cidade mais ao interior, incuba outras referências de passados sensíveis, e nos desperta a proximidade de lugares dentro do nosso Brasil, devido aos seus museus instalados em antigos engenhos de açúcar, plantações de café e os vales recheados de memórias. Guardiã de suas histórias, Trinidad nos leva ao encontro dos cabildos e santerías, enunciativos das resistências culturais dos povos afro-atlânticos, no existir que dá forma e significado de mundo para a sociedade atual, de lá e daqui, com suas especificidades e semelhanças. No Cabildo de San Antonio fomos recepcionados pela senhora Merced, a matriarca que nos contou um pouco da história daquele lugar. O Cabildo de la Nation Congo foi fundado em 1848 por ex-escravizados que se autodenominavam Congo Reales, e ainda hoje encontra-se ativo, fazendo apresentações, nas quais os tambores, feitos por esses fundadores, segundo o relato de Merced, ainda são tocados. Vimos um pouco destas apresentações em vídeos mostrados pelo neto de Merced, Leonam.
Os cabildos cubanos foram lugares onde os africanos de cada uma das nações diaspóricas se reuniam para se socializarem, seja por meio de festas ou eventos religiosos, como também espaços de amparo e cuidado, além de promover a manumissão dos escravizados mais respeitados e antigos, por meio das mensalidades cobradas a cada membro – dinâmica parecida com as irmandades dos homens pretos no Brasil colonial e imperial.
De reconhecida importância local se apresenta a Santería de Yemanyá, sob os cuidados do Babalocha Israel Bravo Vega, que nos comunica caminhos paralelos. Um de seus espaços guarda representações de diferentes expressões religiosas afro-cubanas, da santería ao Palo Monte. A força dessa Orixá, com símbolos e capacidade de trânsito entre religiosidades diaspóricas, afro-cubanas e afro-brasileiras, explicita a permanência de outros fundamentos e estruturas narrativas sobre as nossas histórias nacionais. O espaço é hoje um ponto de referência para a realização de grandes eventos tradicionais da cidade, e tem por isso a legitimidade reconhecida através de constantes visitas de lideranças religiosas e políticas, nacionais e internacionais, o que lhe confere também um aspecto “mais oficial”.
A conversa entre espaços sociais, da vida cotidiana e academia, também se coadunou com uma primorosa visita à historiadora cubana María del Carmen Barcia, dama dos estudos sobre a escravidão e das maiorias minorizadas em Cuba. Expressiva receptividade e disponibilidade de quem ama falar da História e acolhe o Sul Global para quem fala a mesma língua! Na confortável e arejada varanda, manifestaram as afinidades temáticas, teóricas e metodológicas – um olhar às minúcias das vidas que foram marginalizadas, as faces das pessoas que foram escravizadas e o intenso tráfico de Cuba, que por anos tornou-se mais duradouro que o do Brasil.
Sem dúvidas, a estadia em Cuba foi uma experiência de afetos, de conhecimento de novas narrativas e reorganização das referências. Cuba foi uma epítome da Revolução de 1959, mas é também palco das histórias individuais e coletivas, dos encontros e especificidades, que nos leva a pensar no caminhar das narrativas conectadas, por outros ângulos convidativos para atualizar os conhecimentos sobre o próprio Brasil.
* Iamara Nepomuceno, doutoranda, e Jonas Araújo, mestrando, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
fonte: https://jornal.usp.br/artigos/entre-cuba-e-brasil-proximidade-que-entrelaca-pessoas-e-narrativas/