Sem derrotar a caça às travestis promovida pelos bolsonaristas, não há vitória possível em nosso país
Um breve histórico da lgbtfobia como ferramenta de disputa da extrema direita
Não é de hoje que viemos falando aqui no EOL sobre a importância do tema LGBTQIA+, em especial do tema trans, para a agitação política da extrema direita, sua autoconstrução e mobilização de suas bases.
Desde 2010 os temas de gênero e sexualidade são eixos fundamentais do debate público em um conflito entre a luta por direitos das mulheres e LGBTQIA+ e a perseguição opressora da extrema direita. A eleição de Dilma Rousseff com sua “Carta ao povo de Deus” em 2010 já dá o tom do que viriam a ser os anos subsequentes: a carta afirmava um compromisso do governo em não avançar com pautas como a legalização do aborto, a união estável LGBT, prometia manter o compromisso de fazer da família o foco principal de seu governo. Foi nesse espaço, deixado pela recusa do PT em disputar até o final pautas democráticas fundamentais dos setores oprimidos na sociedade, que a extrema-direita cresceu e se fortaleceu ainda sob os governos petistas.
Em 2011, surgiu a polêmica do “kit gay”, que na realidade era o “kit escola sem homofobia”, material que seria distribuído nas escolas públicas com o objetivo de combater a homofobia. Jair Bolsonaro, junto a outros parlamentares fundamentalistas, foi um dos principais difusores de mentiras acerca do projeto, afirmando que tinha como objetivo transformar estudantes em gays e lésbicas. O projeto acabou sendo vetado pelo governo Dilma diante da polêmica com esses setores fundamentalistas que eram base do governo.
De 2011 em diante, o tema da “ideologia de gênero”, termo cunhado pela igreja católica, foi abraçado pelos grupos conservadores e se tornou pauta permanente no debate público, aparecendo com toda força em 2014 com a discussão do novo Plano Nacional de Educação (o PNE, do qual foi retirada a obrigatoriedade dos debates de gênero nas escolas). Neste mesmo ano, Flavio Bolsonaro (então deputado estadual) foi o primeiro parlamentar a apresentar um PL Escola Sem Partido em uma casa legislativa. Em seguida, o seu irmão
Carlos Bolsonaro apresentou outro projeto ESP na Câmara do Rio de Janeiro. No período subsequente assistimos à batalha pelos Planos Municipais de Educação e contra as chamadas “emendas da opressão”, impulsionadas por parlamentares de extrema-direita que buscavam restringir os debates de gênero e sexualidade nas escolas públicas.
Em 2016, na votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, foram muitas as declarações de voto por “deus”, pela “família”, contra a “ideologia de gênero”. Neste ano já havia mais de 50 PLs de censura espalhados por todo Brasil. O movimento Escola Sem Partido passou a divulgar candidaturas comprometidas com suas pautas reacionárias, entre elas a família Bolsonaro. Em 2018, durante as eleições, já havia mais de 150 PLs ESP em todo o Brasil. O ESP atuou para eleger e elegeu diversos parlamentares durante este período, incluindo os próprios Bolsonaros.
É importante salientar que o que é chamado de “marxismo cultural” por estes grupos conservadores na prática trata muito mais de temas de gênero e sexualidade do que de comunismo em si. Daí o papel deste tema na conformação ideológica da máquina bolsonarista, que se articula e vai se construindo como uma luta contra a esquerda que quer sexualizar as crianças. Essa é uma das raízes do antipetismo.
Evidentemente, este fenômeno político não se explica sem levar em consideração a ofensiva burguesa que se abriu no Brasil no ano de 2015. Mas não é possível compreender a ascensão do bolsonarismo que ganhou maioria social na disputa de ideias em 2018 sem entender o papel de suas raízes LGBTfóbicas. A agitação LGBTfóbica é parte fundamental do impulso do bolsonarismo e da aglutinação de pessoas em torno do seu projeto político.
Além da LGBTfobia em geral, é importante salientar que as pessoas trans são escolhidas especificamente como alvo prioritário. O inimigo interno a ser combatido. Isso se materializa na centralidade do tema da “ideologia de gênero” e nas diversas tentativas de barrar o avanço dos nosso direitos básicos de cidadania: tentativa de restringir o nosso uso de banheiros públicos, a proibição do uso de linguagem neutra em órgãos públicos, entre outras movimentações da direita reacionária.
Nikolas Ferreira e a política antitrans
Ao invés de avançar com direitos como a ampliação do atendimento para pessoas trans no SUS ou cotas para pessoas trans nas universidades e no serviço público, estamos assistindo a uma verdadeira ofensiva antitrans nas casas legislativas do nosso país.
No ano em que assumem suas cadeiras as primeiras pessoas trans eleitas ao congresso nacional (Duda Salabert e Erika Hilton), um parlamentar sobe à tribuna da câmara dos deputados vestindo uma peruca e afirmando que a conquista de direitos das pessoas trans representa um retrocesso nos direitos das mulheres.
De acordo com levantamento da Folha (1), o Brasil tem um projeto de lei antitrans apresentado em casas legislativas por dia desde o início deste ano. Os projetos tratam da proibição do uso de pronomes neutros nas escolas e administração pública, do veto ao acesso de crianças e adolescentes a procedimentos médicos para a transição de gênero, do veto à participação de pessoas trans em competições esportivas, além dos já conhecidos projetos escola sem partido e tentativas de proibir a chamada “ideologia de gênero” nas escolas, entre outros. Já existem leis antitrans em vigor, aprovadas nos últimos anos.
Por mais que muitos desses projetos sejam considerados inconstitucionais ou mesmo acabem sendo vetados por Lula, estamos assistindo a uma continuidade e acirramento de uma ofensiva contra as pessoas trans por parte da extrema direita com graves consequências para as nossas vidas na medida que busca instigar a já imensa transfobia que existe na sociedade. O Brasil é o país que mais mata travestis e transsexuais e é sobre esse preconceito e
disseminando um pânico moral-sexual que a extrema direita busca se construir como defensora da moral e da família tradicional.
Guerra ideológica e o papel da esquerda
A eleição de Lula e a derrota eleitoral de Bolsonaro foi uma grande vitória política e permitiu voltar a sonhar com um futuro diferente. Mas sabemos que a extrema direita ainda não está completamente derrotada e vai lutar para voltar à presidência na próxima eleição. Nossos inimigos conquistaram postos importantes no legislativo e seguem vivos na luta de ideias. Está aberta a batalha para punir Bolsonaro e os bolsonaristas por seus crimes, batalha essa que não tem vitória certa sem nossa mobilização.
Parte essencial da luta para impor uma derrota definitiva à extrema direita é vencer o debate de ideias sobre gênero e sexualidade, é indispensável impor a conquista dos direitos básicos das pessoas trans. Se esse é um tema central para nossos inimigos, não podemos deixá-los à vontade com sua política transfóbica para “evitar temas polêmicos”.
Esse é um balanço que precisa ser feito sobre os governos do PT e sobre a campanha eleitoral no ano passado. Os governos do PT tiveram políticas importantes e ampliação de direitos para LGBTQIA+. O Programa Transcidadania (2) em São Paulo, criado a partir de decreto pela prefeitura de Fernando Haddad, é exemplo de política pública a ser ampliada e implementada em todo o Brasil. Por outro lado, refém de seus acordos com setores conservadores no congresso e com receio de encarar a luta de ideias frente à opinião pública, o PT deixou de avançar com agendas fundamentais de direitos e permitiu que os conservadores seguissem impondo sua agenda LGBTfóbica. O PT escolheu governar com o fundamentalismo evangélico e não com a mobilização permanente do povo trabalhador.
Durante a campanha eleitoral, esses temas foram solenemente evitados, ao invés de frontalmente enfrentados. Lula chegou a se reunir com o
conservador Deputado-Pastor-Sargento Isidoro (3), conhecido por defender a “cura gay” e as asquerosas comunidades terapêuticas. É dessa forma que as ideias conservadoras ganham cada vez mais espaço na sociedade.
O novo governo Lula não pode cometer os mesmos erros do passado, e a esquerda precisa compreender que não podemos nos furtar ao debate, mais do que isso, precisamos enfrentá-lo de frente, tendo em mente a centralidade que tem. Foi um imenso acerto por parte do governo Lula a defesa do julgamento de Nikolas Ferreira por transfobia! (4) Mas precisamos ir por mais!
É muito mais do que evidente que a extrema direita busca reeditar sua estratégia de construção sobre os temas de gênero e sexualidade, se apoiando nos aspectos mais atrasados da sociedade brasileira. Sem derrotar a caça às travestis promovida pelos bolsonaristas, não há vitória possível em nosso país.
Notas
1 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/brasil-tem-um-novo-projeto-de-le i-antitrans-por-dia-e-efeito-nikolas-preocupa.shtml
2 https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/lgbti/prog ramas_e_projetos/index.php?p=150965
3 https://esquerdaonline.com.br/2021/09/01/sobre-o-encontro-de-lula-com-o-pas tor-sargento/
4 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/04/15/ministerio-direito s-humanos-nikolas-ferreira-transfobia.htm
fonte: https://esquerdaonline.com.br/2023/04/24/inimigas-publicas-a-caca-as-travestis-pos-bolsonaro/