O Correio Braziliense conta a trajetória de quatro mulheres trans que se destacam em suas áreas de atuação no Distrito Federal, inspirando outras a sair da margem da sociedade e ocupar cada vez mais espaços sociais e de poder
O prefixo trans remete à transgressão, transformação, transcendência. A potência dessas palavras traduz a trajetória de mulheres trans que superaram barreiras e preconceitos, ocupando lugares de destaque na academia, na sociedade, na política e na cena artística de Brasília. Ava Scherdien, Ella Nasser, Lucci Laporta e Paula Bennet são exemplos de mulheres que ajudam outras mulheres, seja inspirando ou lutando contra a opressão e por mais direitos para todas.
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Primeira mulher trans a compor o Conselho dos Direitos da Mulher do Distrito Federal (CDM-DF), a assistente social Paula Bennet, 43 anos, dedica a vida à busca por mais cidadania e dignidade para todas as mulheres, além de outras minorias. Ativista de direitos humanos e das pessoas LGBTQIAPN , gestora pública, consultora, palestrante, poetisa e atriz, Paula ocupa diferentes espaços de atuação social e política.
Como coordenadora de políticas LGBT do Distrito Federal e trabalhando na Subsecretaria de Direitos Humanos e Igualdade Racial do DF, ajudou a elaborar planos, ações afirmativas e, principalmente, políticas públicas. Além do aprendizado e de ações transversais como a questão da igualdade racial, pessoas com deficiência, idosos e indígenas. "Muitas pessoas me procuram para dar orientação sobre direitos e como denunciar atos discriminatórios. Por várias vezes, oriento mulheres vítimas de violência e pessoas LGBT que sofreram violência, inclusive, por parte da própria família", conta.
Paula ajudou a escrever a Portaria nº 3/2017, que determina o uso do nome social e respeito à identidade de gênero por parte de unidades dos órgãos da administração pública direta e indireta do Distrito Federal, que passaram a adicionar um novo campo em cadastros, formulários, prontuários, fichas socioassistenciais, relatórios técnicos e instrumentais de atendimento ou documentos congêneres a serem preenchidos para que pessoas trans registrem o nome com o qual se identificam socialmente.
Além dessa conquista, Paula batalhou ainda pela criação da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, por Orientação Sexual, contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin). "Quando realizado com responsabilidade, o ativismo tem o poder de transformar o mundo e a vida das pessoas. A cada conquista ou ocupação de espaço, eu carrego comigo várias vozes que gritam por oportunidades, justiça e liberdade", ressalta.
Por seus trabalhos, Paula Bennet já recebeu prêmios como ativista e gestora pública, como o Troféu Orgulho LGBT, o Prêmio Beijo Livre na categoria "Gestão Pública" e o Troféu Solidariedade. Também foi homenageada pela Organização das Nações Unidas (ONU) na campanha Livres & Iguais, sendo uma das nove personalidades trans pintadas em aquarela para a confecção de cards de divulgação. Além disso, ela idealizou a criação do jardim Marina Garlen e do Espaço Dandara, em homenagem às pessoas trans, onde há mais de 80 pés de ipês plantados próximo ao estacionamento 11 do Parque da Cidade.
Também assistente social, Lucci Laporta, 31 anos, é líder feminista no DF e representa o coletivo Juntas e o 8M unificado, plataformas por meio das quais atua em favor das mulheres cis e trans. "Sempre vi a militância como uma forma de criar uma rede de proteção. Por mais que seja um caminho difícil, é uma forma de criar uma rede de acolhimento e cuidado, o que, para mim, sempre foi muito importante", diz.
Lucci relatou ao Correio que, antes de ocupar um espaço de voz e liderança, passou por uma série de preconceitos e opressões por ser uma mulher trans. "Sofri preconceito na escola, principalmente por parte de professores e da direção", revela. Ela detalha que a entrada na Universidade de Brasília (UnB) e, consequentemente, no movimento estudantil, representou uma libertação. "Percebi que o mundo era maior do que eu imaginava, apesar de também ter sofrido preconceito na universidade", salienta.
Por meio do trabalho que realiza atualmente como ativista e assessora parlamentar, Lucci ajudou a redigir e aprovar importantes leis distritais em favor de pessoas trans, entre elas, a Lei Complementar nº 1.024/2023, que isenta pessoas trans de taxa de segunda via para trocar o nome no documento de identidade. "Para nós, não é uma taxa de segunda via, é a primeira via de um documento que nos representa de fato. Muita gente não mudava o nome por não ter dinheiro", comenta.
Outra conquista para a qual Lucci participou ativamente foi a Lei conhecida como Victoria Jugnet, que garante dignidade póstuma às pessoas trans. Victoria foi uma adolescente de 18 anos que, quando faleceu, teve a certidão de óbito emitida com o nome masculino. A lei, sancionada em 2021, garante o nome social em lápides, jazigos e certidões de óbito mesmo se pessoas trans não tiverem conseguido retificar o nome em vida.
A ativista atuou ainda na luta para que, nos casos de feminicídios de mulheres trans, sejam usados os mesmos protocolos utilizados no caso de mulheres cis, recomendação acatada pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF). "Sempre achei fundamental que as pessoas reconheçam que nós somos vítimas do patriarcado", ressalta.
Protagonismo artístico
Ava Scherdien, 29, e Ella Nasser, 32, são exemplos de mulheres trans que quebram paradigmas e se destacam em áreas da cultura onde predominam homens em posições de evidência. Produtora cultural, diretora de teatro, intérprete e dançarina, Ava foi pioneira ao ser a primeira acadêmica do DF a escrever sobre produção cultural em sua tese de mestrado. Bacharel, licenciada e mestra em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa de culturas e saberes, ela foi a primeira mulher trans a defender uma dissertação no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da universidade. "Ao analisar a Mostra Cometa Cenas, o estudo reconhece e valoriza a importância do teatro como forma de expressão artística e cultural", explica Ava. "O trabalho ressalta o papel fundamental das iniciativas culturais na promoção da produção teatral e no enriquecimento do cenário cultural de Brasília", complementa.
A acadêmica conta que a trajetória até a conclusão do mestrado não foi fácil. "Sou bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, após ter divulgada a conclusão da minha tese, recebi comentários transfóbicos. Além disso, as pessoas questionaram o valor e a fundamentação da minha pesquisa", relata. Apesar das dificuldades, Ava acredita que o fato de estar no mundo como uma pessoa negra, trans, à frente de projetos e movimentos artísticos é uma forma de abrir caminhos e plantar oportunidades. "Meu trabalho, minha pesquisa e minhas relações são reverberações de um movimento de união e fortalecimento. Sempre foi imposto que somos escória, mas se a gente pensa bem, se a gente junta toda a comunidade LBGTQIAPN , negros, mulheres cis e trans, nós criamos uma revolução", brada.
Primeira DJ mulher trans de Brasília e uma das pioneiras do Brasil, Ella Nasser, 32 anos, atua na área desde 2014. Até conseguir romper barreiras e ocupar um lugar de destaque no cenário do entretenimento no DF, Ella enfrentou desafios e preconceito. "Quando comecei na profissão, ainda era uma pessoa vulnerável e não tinha tantos acessos. Nesse processo, vieram muitas violências de pessoas que não estão preparadas para lidar com pessoas como eu. Sofri bastante transfobia", menciona.
Ella integra o coletivo Distrito Drag e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), e considera importante a luta por direitos. "Por muito tempo, fiquei com a sensação de que eu precisava de alguém para me ajudar a chegar aonde eu queria. Essa ideia era vendida para mim de diversas formas, como se pessoas cisgênero precisassem comprar a luta das pessoas trans para que conseguíssemos avançar em algo. Eu passei a integrar o ativismo justamente para mostrar que podemos ser protagonistas da nossa própria trajetória", assinala. "Hoje, só de estar em cima do palco, já me posiciono politicamente como mulher e enquanto pessoa trans. Acredito que só o fato de estar ali já é motivo de inspiração", conclui.
Contra a opressão
Segundo a análise da advogada feminista interseccional Larissa Guedes, quando mulheres trans se destacam e assumem posições de liderança, elas desafiam normas sociais de opressão. "Além disso, também trazem perspectivas e vivências únicas para o coletivo. A inclusão efetiva delas na luta não é apenas uma questão de justiça, mas uma necessidade para construirmos uma sociedade diversa, inclusiva e igualitária", analisa.
Para a especialista, as mulheres trans e travestis são fortes pilares da luta por direitos humanos. "Enfrentando diariamente a marginalização sistemática, elas são empurradas pela estrutura para a desumanização, descaracterização dos seus corpos, exploração sexual e validação dos abusos e violências", constata.
"O movimento de mulheres e a luta são coletivos, acolher com interseccionalidade é garantir que as mulheres trans e travestis se apropriem dos espaços historicamente negados a elas, para assumirem posições de destaque, não só para serem ouvidas, mas para liderarem", conclui.