Quase lá: Restrita, cobertura do seguro-desemprego no Brasil aprofunda desigualdades

Com baixo índice de cobertura da população (3,8%), benefício exclui justamente os grupos sociais mais vulneráveis

  Publicado: 18/09/2023 - Jornal da USP

Texto: Camilla Almeida*
Arte: Carolina Borin**

 

O seguro-desemprego é um benefício para trabalhadores demitidos sem justa causa, ou seja, sem motivo legal aparente. Criado em 1986, ele tem o propósito de garantir assistência financeira temporária enquanto o beneficiado se recoloca no mercado de trabalho. Essa importante política de seguridade, contudo, passou por uma série de modificações conforme mudaram as dinâmicas trabalhistas no Brasil. Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP mapeou tais mudanças e recolheu dados sobre o benefício, fornecendo um panorama sobre sua cobertura.

O levantamento apontou a existência de desigualdades não só no recebimento do seguro-desemprego, mas também no mercado de trabalho como um todo. A cobertura do auxílio se mostrou maior entre homens com idade entre 25 e 49 anos e com ensino médio completo, excluindo um contingente cada vez maior de trabalhadores informais, que não possuem vínculo empregatício e não contam com a proteção de leis trabalhistas (CLT).

De acordo com Vitor Menezes, doutor em Sociologia pela FFLCH e responsável pela pesquisa, essas disparidades indicam uma estratificação – a separação dos trabalhadores de acordo com sua posição socioeconômica, com o favorecimento dos privilegiados. “Diferentes grupos sociais possuem diferentes oportunidades de participação no mercado. Basicamente, as chances de você encontrar um trabalho bem remunerado e de se engajar em relações assalariadas dependem de determinadas variáveis, e os mais atingidos pelo desemprego acabam sendo aqueles que já se encontram em situação de vulnerabilidade econômica e social”, explica o pesquisador ao Jornal da USP.

O estudo considerou uma série histórica que vai desde a criação do auxílio até o ano de 2017. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e acessados nas plataformas oficiais do Ministério da Economia. 

Vitor Menezes - Foto: Arquivo Pessoal

Índice de desmercantilização

Para chegar a tais conclusões, o pesquisador calculou o índice de desmercantilização, que utiliza diferentes indicadores para avaliar sistemas capitalistas de bem-estar. A ideia, elaborada pelo sociólogo Gøsta Esping-Andersen, tem como objetivo estimar as condições nas quais os indivíduos conseguem atender às suas necessidades por meio das políticas sociais oferecidas pelo Estado.

Na análise da seguridade garantida pelo seguro-desemprego, Menezes levou em consideração cinco fatores: a duração do benefício; o tempo necessário de vínculo empregatício para poder recebê-lo; a quantidade de dias de espera para o recebimento do valor; a proporção do salário que é reposta pelo auxílio; e a cobertura efetiva da população.

Atualmente, o seguro-desemprego pode ser solicitado por todo trabalhador formal entre o 7º e o 120º dia após a data da demissão e entre o 7º e o 90º dia após a data da demissão para o empregado doméstico. No caso dos trabalhadores formais, o benefício é calculado com base na média dos salários dos últimos 3 meses que antecedem a data da dispensa. Já os empregados domésticos recebem um valor fixo equivalente a um salário mínimo, que atualmente é de R$ 1.320.

Para ser elegível ao recebimento, é preciso ter um período de meses trabalhados, que varia de acordo com o número de solicitações de benefício já feitas pelo trabalhador. São exigidos 12 meses de vínculo empregatício nos últimos 18 imediatamente anteriores à data de dispensa, para a primeira requisição. Na segunda, é preciso pelo menos 9 meses nos últimos 12 imediatamente anteriores à demissão. Já nos demais pedidos, 6 meses trabalhados imediatamente anteriores à data de dispensa.

Comparação entre os países da OCDE

Elaboração: Jornal da USP - Fonte: A História do Seguro-Desemprego no Brasil: Regras, Dinâmicas do Mercado de Trabalho e Proteção Social/Vitor Menezes

O Brasil se posiciona em último lugar na proteção ao desempregado em relação aos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual faz parte. O grupo, que conta com a participação de 38 Estados, tem o objetivo de impulsionar o crescimento econômico e a harmonização de políticas entre os participantes.

Com um baixo índice de cobertura da população (3,8%) e um expressivo número máximo de dias de espera (30), o Brasil fica muito atrás de países como a Holanda, que possui um seguro com reposição salarial significativa e um período prolongado de elegibilidade, além de abranger grande parte da população desempregada.

Índice de desmercantilização

Imagem: Reprodução/A História do Seguro-Desemprego no Brasil: Regras, Dinâmicas do Mercado de Trabalho e Proteção Social/Vitor Menezes

Menezes destaca que, embora reveladora, a comparação da realidade brasileira com as vividas pelos Estados pertencentes à OCDE deve ser feita com cautela. “É importante comparar o Brasil com esses países porque muitos deles foram entendidos como modelos a serem minimamente seguidos por sua seguridade social. Porém, analisar o abismo de realidades e compreender o contexto histórico que envolve o seguro-desemprego no Brasil é essencial.”

Contexto histórico

O benefício foi criado em 1986 em meio a um contexto de desindustrialização e insegurança econômica, com a implementação do Plano Cruzado – um conjunto de medidas econômicas que visavam à diminuição da inflação. Para poder usufruir dele, a pessoa desempregada deveria atender a certos requisitos, como ter contribuído para a previdência social por, pelo menos, 36 dos últimos 48 meses anteriores à demissão. O seguro-desemprego, que podia ter uma duração de até 4 meses, era calculado em 50% do pagamento anterior para aqueles que ganhavam até três salários mínimos (com um valor-base de 70% de um salário mínimo). 

A implementação de novas medidas, como a exclusão da necessidade de contribuição previdenciária e a inclusão de trabalhadores domésticos na população elegível para o benefício, contribuiu para a expansão e robustez do seguro-desemprego ao longo dos anos. A cobertura mais do que dobrou de 1986 a 1992, assim como a proporção de trabalhadores elegíveis. Em 1998, dos 84,6% que cumpriam os requisitos para recebimento da assistência, 72,3% eram contemplados pelo seguro-desemprego.

Tabela de duração exigida de vínculo empregatício x proporção de trabalhadores elegíveis durante o período analisado

*Valores relativos aos trabalhadores na primeira solicitação do seguro

Elaboração: Jornal da USP - Fonte: A História do Seguro-Desemprego no Brasil: Regras, Dinâmicas do Mercado de Trabalho e Proteção Social/Vitor Menezes

Contudo, a década de 2010 ficou marcada por uma série de ações restritivas que tornaram os critérios de qualificação mais rigorosos e, consequentemente, prejudicaram a ampliação da cobertura. Em 2015 foi aprovada a Lei n. 13.134, que dobrou o tempo necessário de vínculo empregatício para a primeira solicitação do seguro e estendeu em mais três meses o tempo requerido para a segunda. Além disso, também foi instituída a obrigatoriedade da participação em cursos de “formação inicial e continuada ou de qualificação profissional” para o recebimento da assistência.

“Essas mudanças prejudicaram especialmente os trabalhadores jovens, sem tanta experiência. A restrição das regras de acesso ao seguro implicou um recuo do papel do seguro-desemprego no Brasil de proteger os trabalhadores”, afirma Menezes. Paralelamente às alterações nos critérios de elegibilidade, o número de desempregados demonstrou um aumento significativo, com um crescimento de 77,5% entre 2012 e 2019, ao passo que o número de segurados diminuiu em 19%.

De acordo com o pesquisador, isso resultou em um cenário de escassez de proteção social e limitação de oportunidades de emprego formal. “Esse é um período em que existiu um processo de desestruturação do mercado de trabalho, com o aumento do desemprego e da informalidade. Assim, o fenômeno do desemprego desprotegido explode no Brasil.”

Seguridade social

O seguro-desemprego, embora seja uma importante medida de seguridade social, foi pensado dentro dos moldes de estratificação do mercado e deixa de fora os trabalhadores informais. Segundo um levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE), de janeiro a maio de 2023, 38 milhões atuavam sem vínculo empregatício – o que implica uma taxa de informalidade de 38,9% no mercado de trabalho no período. Frente a isso, o pesquisador aponta a necessidade de compreensão do regime de bem-estar brasileiro para a adequação de respostas a problemas sociais.

“O seguro-desemprego foi inicialmente pensado como um modelo de pactuação restrita entre trabalhadores já bem consolidado, os empregadores e o Estado. É preciso que se entenda o panorama do País para que haja aderência e respostas adequadas”, diz o pesquisador, ao ressaltar que não necessariamente o problema se resolverá com mudanças pontuais nas regras de acesso ao benefício.

Agora, Menezes irá mapear as mudanças que ocorreram a partir de 2020 na proteção ao desemprego no Brasil como pesquisador convidado na University of Southern Denmark (SDU), na Dinamarca. O objetivo é explorar tanto políticas públicas contributivas, como o seguro-desemprego, quanto as assistenciais, como o Bolsa-Família. “Explorar essas alterações nos faz compreender como o mercado funciona. Esse tipo de pesquisa é importante para que tracemos os limites das políticas públicas existentes e que nós possamos pensar em caminhos para aprimorá-las.”

Os resultados da pesquisa foram publicados no artigo A História do Seguro-Desemprego no Brasil: Regras, Dinâmicas do Mercado de Trabalho e Proteção Social, disponível na revista Dados.

Mais informações: e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., com Vitor Menezes

 

*Estagiária sob orientação de Valéria Dias

**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado

fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/restrita-cobertura-do-seguro-desemprego-no-brasil-aprofunda-desigualdades/

 


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