Pioneiras, que chegaram à nova capital do país em meio à inauguração, relatam histórias de um tempo em que os homens protagonizaram os fatos, mas tiveram nelas preciosas apoiadoras
A história de Brasília — que completa 63 anos de inauguração em 21 deste mês — é única e precisa ser contada e preservada para sempre. Afinal, foi a maior empreitada do século passado. Entretanto, a memória costuma valorizar mais as contribuições dos homens, deixando de lado o esforço fundamental das mulheres que fizeram o sonho de Juscelino Kubitschek se tornar realidade.
Foi a partir dessa inquietação que Elvira Barney, 84, escreveu o livro As mulheres pioneiras de Brasília (2001, Thesaurus), no qual ela reúne os depoimentos de 90 mulheres, à época jovens recém chegadas à capital que acabara de ser inaugurada. "Eu comecei a lembrar de Brasília daquela época e a registrar tudo no computador. Uma amiga viu o que eu estava escrevendo e disse que aquilo tinha que virar livro", relata a escritora. "O recorte em mulheres foi porque só se falava em arquitetos, engenheiros ou políticos, todos homens, quando falávamos da história da cidade, e decidi focar nelas", explica.
A repercussão do livro se traduz na presença de cerca de 800 pessoas no evento de lançamento. "O sucesso foi justamente pelo recorte inédito", sustenta Elvira. "Sem as mulheres, Brasília não seria possível. Quem queria morar em um acampamento sem estrutura e banheiro comum? Por isso que era tão comum recém-casados. Era o início de uma vida nova, tanto em uma cidade que nascia quanto nos relacionamentos", lembra.
Barney recorda da terra vermelha, da poeira e de não ter nenhum lugar para ir. Ela chegou à capital em 1961. "Havia um restaurante na W3 Sul e uma pizzaria, mas havia muita solidariedade em meio à solidão. Se você convidava alguém para um café, apareciam oito pessoas. Era comum, também, conhecer muitos funcionários públicos revoltados, porque tiveram que sair do Rio de Janeiro para morar no meio do nada", destaca.
Ela e o marido, César Barney, um dos arquitetos da equipe de Oscar Niemeyer, estavam entre os primeiros moradores do Lago Sul, ainda nos anos 1960. Na festa de inauguração, todos foram obrigados a ficar trancados dentro de casa até segunda ordem do Corpo de Bombeiros. Uma onça que havia fugido do zoológico estava passeando pela região. "É cada história daquela época que as pessoas não acreditam", diz a escritora, aos risos.
Asas da liberdade
Apesar da precariedade, Elvira Barney lembra do sentimento de liberdade que Brasília trouxe, principalmente para as mulheres. Mesma sensação que Moema Leão, 77, teve ao chegar na cidade, em 1971. "Quando abri a janela do apartamento do meu cunhado, na 111 Sul, e vi aquela imensidão plana do cerrado, eu me emocionei. Senti que poderia ser o que quisesse", rememora.
Ela é de uma família de fazendeiros de Rio Verde (GO), um meio muito conservador. "Fiquei maravilhada com Brasília. As mulheres não tinham o hábito de trabalhar naquela época, mas eu queria muito, até que venci a resistência do meu marido", conta Moema. Após frequentar cursos e atuar no mercado há décadas, ela é uma das principais figuras do ramo de decoração de Brasília.
Nos tempos em que a W3 Sul ainda era o "boulevard brasiliense", a goiana promovia grandes festas beneficentes com a alta sociedade. O dinheiro arrecadado com os eventos ergueu uma creche e abrigos para idosos e pessoas com deficiência em Ceilândia. Hoje, ela e o grupo com mais de 30 mulheres pioneiras são engajadas na preservação do patrimônio da cidade. "Agora, estamos buscando a restauração do Museu Vivo da História Candanga. É a nossa identidade."
Sonho de Dom Bosco
Natanry Ludovico Lacerda Osorio, 84, sonhava vir para Brasília antes mesmo da inauguração. Em 1955, em Goiânia (GO), ela ouviu de uma conversa entre freis salesianos sobre quem traduziria os sonhos de Dom Bosco. Naquele momento, ela pediu ao santo que a levasse para Brasília, súplica que relembraria três anos depois, em um baile em um clube de Goiânia. "Um homem me tirou para dançar e me confessou que tentava me conhecer há um ano e logo me pediu em casamento, o que me assustou. Mas quando ele mencionou que trabalhava na Cidade Livre (hoje, Núcleo Bandeirante), eu me interessei", lembra.
No ano seguinte, os dois se casaram e, após vencer a resistência do marido, que achava o acampamento um lugar muito difícil para uma mulher viver, ela foi morar com ele na Cidade Livre. "Cheguei aqui e vi um faroeste. Muita poeira e casas iluminadas por lamparinas. Todo aquela estrutura precária não assustou, pelo contrário, ela vibrou com as possibilidades que via pela frente. Ela tomou como missão alfabetizar as crianças, já que tinha o diploma da antiga Escola Normal. O primeiro contrato de professora de Natanry é assinado pelo engenheiro Israel Pinheiro. Ela chegou a ter turma de 50 crianças, todas alfabetizadas com sucesso, feito que surpreendeu o então responsável pela educação do DF, Ernesto Silva. "Qual é o segredo?", indagou.
"Havia vagas de trabalho apenas em Taguatinga, na época cheia de candangos pobres, com barracos, mas cheia de esperança. Eu louvava a Deus porque estava vivendo algo único", relembra. As lembranças de Natanry são preciosas. Ela conheceu a Vila Amaury, nome em homenagem ao responsável pela alimentação dos candangos. "Quando foram passar o trator no cerrado que se encontrava no local, encontraram muitos animais, com cobras e onças. Uma coisa que ninguém verá novamente", rememora.
Devota do padroeiro de Brasília, Dom Bosco, defende que o tratamento a Brasília deve ser similar ao sagrado. "Hoje, eu conclamo às autoridades que desenvolvam as regiões administrativas do DF, para que as pessoas tenham qualidade de vida, não só no Plano Piloto e adjacências", deseja Osorio.
Única remanescente
A relativa pouca idade pode levar a pensar que Brasília é uma ideia concebida também recentemente. Mas a verdade é que a transferência da capital para o interior do país foi pensada desde os tempos da colônia. Ainda em 1750, o cartógrafo genovês Francisco Tossi Colombina elaborou a chamada Carta de Goiás, sugerindo a mudança da capital do Brasil para o Planalto Central. A partir daí, a ideia foi defendida em outros momentos históricos e comissões formada por cientistas exploradores fizeram expedições para desbravar a região pouco habitada e desconhecida à época.
No fim do século 19, a primeira expedição, liderada pelo geógrafo belga Louis Ferdinand Cruls e formada por pesquisadores, geólogos, geógrafos, botânicos, naturalistas, engenheiros e médicos foi a primeira a mergulhar nos rincões do país para identificar o local propício para erguer a nova sede da República, longe do litoral e protegida de invasores. No entanto, houve outras missões, além da liderada por Cruls, com o mesmo objetivo. Em 1946, o general Djalma Polli Coelho liderou uma comissão para a fundação da nova capital, mudança que já era prevista pela Constituição. A secretária da comissão, Maria Margarida de Alcantara Pellizzaro, hoje com 105 anos, é a única remanescente do grupo. À época, era responsável por relatar tudo que acontecia na comissão.
Dona Margô, como é mais conhecida, veio morar em Brasília no ano da fundação. No ano seguinte à chegada, eles se mudaram do Paranoá para a Vila Planalto, quando havia acabado de ocorrer uma revolta em um refeitório. Os candangos, que trabalhavam exaustivamente, insatisfeitos com a quantidade e com a qualidade da comida oferecida, promoveram um quebra-quebra no local. "A polícia saiu de lá com as mãos sujas de sangue. Eles não tinham dó nem piedade. Mataram vários dos revoltosos", recordou, em registro feito pelo servidor do Arquivo Público do DF Wilson Vieira. "A gente não achava que Brasília daria certo. Era muito penoso", frisou a pioneira centenária, que hoje reside em uma residência permanente para idosos, no Lago Norte.