Conselho Federal de Medicina emitiu nota criticando o uso de máscaras para proteção contra a covid. Fato parece mostrar que o bolsonarismo está unido para tentar desvirtuar debate público – além de aliviar os crimes cometidos pelo ex-presidente
Publicado 16/02/2023 às 06:13 - OutrasPalavras
Foto: WPLG Local
Às vésperas do carnaval e imediatamente após o Brasil registrar oficialmente seu primeiro dia sem mortes por covid desde que a pandemia começou a matar no país, o Conselho Federal de Medicina desenterrou uma velha polêmica para gerar ruído: criticou o uso de máscaras em aviões e aeroportos. Ignorando seu uso já pacificado em outros países em contextos bem menos graves, além de todo um manancial de estudos, o órgão publicou nota na qual afirmava não haver motivos para o uso “indiscriminado” da medida.
De forma cínica, a nota assinada pelo presidente José Hiran Gallo afirma que a medida “jamais pode ser imposta a pessoas que não compartilham de tais ideologias ou comportamentos”. Para esta autoridade médica de uma autarquia federal, uma política sanitária mundialmente aceita é “ideologia”. O órgão, caracterizado recentemente por sua fidelidade canina a Bolsonaro, usou como base teórica uma revisão sistemática do Centro Cochrane, tradicional instituto que faz análises randomizadas de estudos diversos.
Em seu Instagram, a médica Luana Araujo desmantelou os argumentos do órgão e, apesar de reconhecer o valor do Centro Cochrane, avaliou como péssima a revisão de estudos, sem qualquer coerência metodológica. “São vários furos. O primeiro era avaliar o comportamento social na comunidade, com estudos randomizados, metanálise. Estudo randomizado controlado é ótimo para uma série de estudos, mas não comportamentos sociais. Só pode ser usado se partir de uma mesma pergunta em todos os estudos combinados, o que jamais aconteceu. O segundo furo é admitir que a filtragem e vedação de uma máscara N95 é igual à de uma máscara cirúrgica, e não é. Nem foram feitas pra mesma coisa. E o estudo não diferencia uso ocasional de uso contínuo, como ocorre na prevenção de covid, porque a transmissão se dá em qualquer hora e lugar. Isso é muito básico. Outro problema é que tais estudos costumam ter o chamado grupo-controle. Se quero saber se funciona ou não, faço o seguinte: dou máscara pra um grupo e não dou a outro. E aí eu consigo comparar. Não havia isso. A revisão sistemática tira resultados inexistentes”.
Para além da má fé da autarquia médica, notoriamente partidária de um político cuja condução criminosa da pandemia foi responsável por um número estimado de 1.142.300 mortes, como levantado em reportagem recente do Outra Saúde, cabe debater se o órgão teria autoridade para emitir tal posicionamento. Não seria atribuição do ministério da Saúde e das respectivas secretarias estaduais e municipais definir pela conveniência do uso de máscaras pela população?
“A questão central é que não compete ao CFM opinar, formalmente, sobre esse assunto, nem se imiscuir em temas de políticas públicas, enquanto autarquia federal que é. Toda a diretoria do CFM deveria ser processada. O crime é gastar dinheiro (anuidade) que médicos têm de pagar compulsoriamente à autarquia federal, cujas contas são auditadas pelo TCU, em atividades estranhas à competência do CFM”, disse ao Outra Saúde Paulo Capel Narvai, professor aposentado de saúde pública da USP.
O ofício malicioso do órgão é um documento enviado à Anvisa, que rapidamente o desacreditou. Mas sua publicidade claramente visou o debate político. A finalidade parece ser a de anestesiar a consciência da população a respeito dos crimes que Bolsonaro, Eduardo Pazuello, Marcelo Queiroga e aliados cometeram quando tiveram à sua frente a maior crise sanitária da história do país. Crimes que têm todas as condições de terminarem com condenações na justiça.
“O CFM é um órgão de Polícia Administrativa do Estado, vinculado ao Poder Executivo, que tem como finalidade controlar a oferta de serviços profissionais médicos dentro de padrões estabelecidos pelo Estado. Não pode advogar condutas anticientíficas contrárias à proteção da saúde. Comete crime administrativo ao proceder desta maneira. O direito administrativo é especialidade complexa do Direito e provavelmente deve ser acionado pelo Ministério Público Federal”, pontuou o sanitarista Heleno Correa Filho.
Implacável na crítica, Heleno percebe os efeitos pretendidos pelo gesto da autarquia e seus dividendos políticos. “Talvez tenhamos chegado ao ponto em que estamos exatamente por esperarmos muito da judicialização e acabarmos enganados, verificando que o poder judiciário é atravessado pelas mesmas linhas de política que disputam narrativas contra o povo, além da corporação se apropriar de aparatos do mesmo Estado com fins de interesse próprio em prejuízo do interesse coletivo. Faz tempo que deixou de ser questão de leis e tornou-se questão de fanatismo e mau-caratismo”.
Logo a seguir e talvez não por acaso, o ex-ministro de Bolsonaro e atual governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, sancionou lei que desobriga apresentação de carteira de vacina em matrículas escolares, uma tradição que muito contribuiu para o controle de diversas doenças nas últimas décadas. Isso dias após seu próprio secretário de saúde, Eleuses Paiva, falar em levar a vacina ao ambiente escolar como método de recuperação de melhores taxas de vacinação na população, que se reduziram muito no Brasil e trouxeram de volta o risco de doenças anteriormente controladas, como o sarampo.
Dessa forma, estamos diante do que parece um movimento articulado de luta pela impunidade de Bolsonaro e demais criminosos da pandemia, em especial os 72 indiciados do relatório final da CPI da Covid – entre eles a doutora Mayra Pinheiro, que não à toa fez alarde do comunicado irresponsável do CFM. Um método articulado de tentativa de instalação definitiva da extrema-direita no centro dos debates decisivos da sociedade e, portanto, de gestão da democracia.
Ex-diretor do departamento de Ciência e Tecnologia do ministério da Saúde durante o governo Lula e membro da Frente Pela Vida, Reinaldo Guimarães resume o que parece interessar. “Para mim, o debate sobre as competências do CFM é importante, mas não é o ponto central. Entendo que o mais grave é o bolsonarismo persistir com força, talvez com ainda maior intensidade, depois de terrorismo e tentativa de golpe. A conversa mole do CFM deve ser somada às cassações e perseguições de vereadores em Santa Catarina, ao menino nazi que tentou invadir escola com bomba em SP e outras ações. A realidade é que o bolsonarismo está na ofensiva, 45 dias depois da vitória de Lula. Grave, muito grave”.