Campanha da Fraternidade de 2023 tem como tema o combate à fome, mas ultraconservadores veem críticas ocultas ao governo Bolsonaro
Metrópoles
Católicos ultraconservadores estão mobilizados contra a Campanha da Fraternidade de 2023, que tem como tema o combate à fome. Cristãos extremistas veem na ação, promovida pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no período da Quaresma, uma espécie de conspiração comunista e convocam outros fiéis a não se envolver nem doar para a campanha.
A abordagem crítica dos católicos ultraconservadores à Campanha da Fraternidade e à própria CNBB não é novidade, mas pode ser mais ou menos feroz dependendo dos temas escolhidos ou do contexto político. Neste ano, que marca o início do terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas últimas eleições, os ataques estão intensos.
Os críticos acusam os bispos da CNBB de distorcer citações bíblicas e manipular a comunidade católica para atacar ideais caros à direita e promover ideias de esquerda, no que seria uma trama para promover a doutrina da Teologia da Libertação, abordagem cristã que enfatiza a defesa dos oprimidos e tem inspiração marxista/comunista.
A mobilização contra a Campanha da Fraternidade de 2023 é liderada por influenciadores digitais ligados ao bolsonarismo e por uma entidade ultraconservadora católica que ficou famosa ao tentar censurar na Justiça um especial de Natal do grupo humorista Porta dos Fundos em 2020.
O youtuber bolsonarista Bernardo Pires Küster, que é investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news e tem quase um milhão de inscritos em seu canal, está fazendo uma série de vídeos contra a campanha da CNBB. Além de atingirem dezenas de milhares de pessoas diretamente no site de vídeos, as pregações de Küster ganham tração em compartilhamentos em redes sociais como Twitter e Facebook e são replicadas em grupos de aplicativos de mensagens, como WhatsApp e Telegram.
Para Küster, que grava seus vídeos num cenário que tem ao fundo um quadro do guru extremista Olavo de Carvalho (1947-2022), a CNBB “esconde e mascara” conteúdo revolucionário em uma causa de fácil defesa, que é o combate à fome. Nos vídeos que têm divulgado, o youtuber acusa a CNBB de usar dados falsos sobre o tamanho do drama da fome no Brasil.
Apesar de admitir, em certo momento, que “toda pessoa [com fome] é importante”, ele questiona pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) que apontou que o número de de brasileiros que não têm o que comer passou de 19,1 milhões no fim de 2020 para 33,1 milhões em 2022. Ignorando a volta do país ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas, Küster escolhe em que dados acreditar e prefere citar uma projeção do Banco Mundial, que indicou a redução da extrema pobreza no Brasil em 2022.
Críticas a Betinho e ao MST
Bernardo Küster também ataca a Campanha da Fraternidade da CNBB pela menção, nos textos de apresentação e apoio à ação, dos atos de distribuição de comida aos mais necessitados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ao longo da pandemia e de uma frase do sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, que foi referência no combate à fome no Brasil e defendia que quem não tem o que comer “tem pressa” e precisa ser ajudado imediatamente.
“O MST foi santificado porque produz lá um pouco de beterraba, batata e alface”, critica o youtuber. Durante a pandemia, o MST doou 6 mil toneladas de alimentos e 1.150.000 marmitas, mas Küster defende que a CNBB não elogie o movimento devido a seu histórico de invasões de terras.
Nos vídeos publicados pelo youtuber há a conclusão de que o objetivo da CNBB com sua Campanha da Fraternidade é criticar políticas do governo de Bolsonaro e promover uma visão esquerdista de mundo, defendendo projetos do governo Lula.
Intolerância religiosa
A Campanha da Fraternidade deste ano também está na mira do grupo católico ultraconservador Centro Dom Bosco, que tentou tirar R$ 2 milhões em indenização do grupo humorístico Porta dos Fundos, mas perdeu na Justiça.
Em vídeo postado no canal da entidade no YouTube, Alvaro Mendes, vice-presidente do Centro Dom Bosco, defende que a Quaresma só foi “bem celebrada” pela Igreja Católica no Brasil até a década de 1960, quando a CNBB começou a promover suas Campanhas da Fraternidade.
“Os membros da CNBB foram impondo campanhas materialistas em todas as Quaresmas, fazendo com que os católicos deixassem de buscar a santidade para incorporar uma visão revolucionária do mundo”, acusou ele, que no mesmo vídeo apelou para a intolerância religiosa ao lembrar da Campanha da Fraternidade de 2021, que foi ecumênica, ou seja, feita em conjunto com outras denominações religiosas. “Incorporou membros de religiões falsas”, atacou Alvaro Mendes.
Os ataques à Campanha da Fraternidade de 2021 e à sua coordenadora, a pastora luterana Romi Bencke, foram documentados pelo Metrópoles na época.
A Campanha da Fraternidade de 2023
É a terceira vez que a fome é tema da Campanha promovida pela Igreja Católica desde 1964. A escolha, realizada via consulta pública entre os católicos, foi feita depois que, após uma década, o Brasil ter voltado a aparecer no Mapa da Fome divulgado pela ONU.
Segundo a CNBB, um dos objetivos deste ano é “propor aos fiéis um caminho de conversão para não ceder à cultura da indiferença frente ao sofrimento humano”.
Durante o lançamento da Campanha deste ano, na quarta-feira de cinzas (22/2), o secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella Amado, defendeu o direito à alimentação saudável e pregou contra o desperdício.
“Se a fome de uma única pessoa já nos deve incomodar, como nos tornarmos indiferentes diante da fome de inúmeros irmãos e irmãs?”, questionou. Ele ainda acrescentou que “segurança alimentar e democracia andam juntas”.