Conhecida como Miss Jujuba, a artista de circo e cicloativista de 38 anos há oito percorria o Brasil levando sua arte
"Julieta era uma multi artista. Completa. Era palhaça, artista de rua, bonequeira, artesã, musicista e lutier", comenta colega de profissão da venezuelana - Foto: Arquivo Pessoal
“Julieta foi e sempre será um grande e belo exemplo de artista e pessoa. Gentil, amorosa, cuidadora e cuidadosa, corajosa. Ela acreditava nesta utopia da liberdade da estrada. E condizente com seus ideais, buscou viver este sonho.” Assim descreve Carina Ninow, palhaça e artista de rua gaúcha, integrante da Dupla Gomesninow, que conheceu Julieta Hernández quando as duas viveram na cidade do Rio de Janeiro e é uma das organizadoras da 'bicicletada' em homenagem à artista venezuelana em Porto Alegre, nesta sexta-feira (12) .
Conhecida como Miss Jujuba, a artista de 38 anos há oito percorria o Brasil levando sua arte, tendo se apresentado em mais de nove estados. Costumava viajar à Venezuela de bicicleta para passar as festas de fim de ano com familiares. No dia 23 de dezembro, ela deixou de responder aos contatos dos amigos e foi dada como desaparecida. Após quase duas semanas, o corpo com sinais de violência foi localizado e, no dia seguinte, identificado, no estado do Amazonas.
“No circo, somos uma rede. Costumamos dizer entre nós, que somos todos uma grande família. E a família circense está vivendo uma semana duríssima. Todos nós, amigos de Julieta, sabíamos dos perigos que as escolhas trazem. Ela também sabia. Mas ainda acreditamos na possibilidade da liberdade e da segurança. Nós, artistas e cicloativistas, temos a mania de acreditar que é possível”, afirma Carina.
:: Brasil está entre os três países mais perigosos do mundo para uma mulher viajante solo ::
A artista salienta que, embora sabendo dos riscos, a comunidade não deixa de apoiar os sonhos. “Tentamos, em rede, sempre fortalecer e auxiliar no caminho. Tanto que foi esta rede que fazia contato diário e começou a mobilização em busca dela, há semanas.”
Arte da palhaçaria
A artista chegou no Brasil em 2016 e viveu no Rio de Janeiro por três anos. Foi nesta época que Carina a conheceu. “Morávamos - Gabriel Gomes e eu - no Rio de Janeiro, e fazíamos muitos movimentos em prol da arte de rua na cidade. Ela estava chegando ao Brasil, expondo seus bonecos durante os festivais de palhaço, como o Anjos do Picadeiro, no RJ. Nos encontrávamos nestas ações de rua. Palcos abertos, encontros de palhaças, festivais”, recorda.
Carina guarda os bonecos da dupla, confeccionados por Julieta, além das memórias da convivência. “Ela foi inclusive nossa catsitter, nos ajudando quando era nossa vez de viajar”. Sua determinação em atravessar este nosso imenso país, em sua bicicleta, nos inspirou muito.”
Foi durante sua estada no Rio de Janeiro que Julieta foi se aprimorando na arte da palhaçaria, fez escola livre de palhaços no Rio, e lá, foi batizada com o nome de Miss Jujuba. Foi fundadora da Rede Venezuelana de Palhaças, com estudos no Brasil sobre Teatro do Oprimido. Fez parte da rede Palhaços sem fronteiras. “Tem um depoimento/apresentação dela belíssimo em seu instagram. Seu instagram era @utopiamaceradaenchocolate”, comenta Carina
O último espetáculo de Julieta foi "Viagem de bicicleta de uma palhaça só, sozinha?". Ela fazia parte grupo do "Pé Vermêi", que conta com artistas e cicloviajantes que pedalam pelo país.
“Ser cicloviajante, independente do gênero, é lidar diariamente com os perigos da estrada. Muitas vezes há, sem motivos, uma hostilidade tremenda, com agressões espontâneas. Destas, Julieta conseguiu passar”, afirma Carina.
“Precisamos de maior punição aos casos de feminicídio”
“Ser mulher é ser ainda mais reprimida, até mesmo por outras mulheres. Sei que muito disso é pelo medo do mundo. Uma tentativa de cuidado. 'Não vá, é perigoso.' Mas nosso cuidado deve ser em termos uma sociedade mais segura. Para então podermos dizer 'Vai que estou te cuidando e ninguém pode mexer com você'. Isto ainda é sonho. Mas a vida é feita de sonho. Algumas vezes eles se realizam. Noutras, vamos parar em um pesadelo”, pontua Carina.
Desde o desfecho do caso, a artista comenta que tem escutado as pessoas muito surpresas ao saberem que ela era uma mulher e viajava sozinha. Contudo Carina chama atenção que Julieta não era a única e esta não deveria ser uma surpresa. “O que deve nos surpreender é a banalidade do desejo de um furto. Nos surpreender e assustar com o fato de um objeto ter mais valor que uma vida. Deveria nos surpreender o fato de uma mulher não se sentir segura seja viajando solo, andando na rua, ou mesmo dentro de casa”, avalia.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2022, uma mulher foi morta a cada seis horas no país, ou seja, quatro mulheres mortas por dia. No total, foram 1.437 vítimas de feminicídio no ano passado, um aumento de 6,5% em relação aos 1.347 registrados em 2021.
“Se nos chocávamos quando um vírus começou a matar quatro pessoas ao dia, por que não nos choca este dado? Porque não nos choca o costume de deixar de fazer coisas, pelo medo?”, questiona Carina.
O Brasil registrou em 2022 o maior número de estupros da história, de acordo com a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 74.930 vítimas, sendo que mais da metade (56.820 casos) são estupros de vulnerável, ou seja, crimes praticados contra menores de 14 anos.
Para Carina é preciso uma maior punição aos casos de feminicídio. “Pois eles subjugam a mulher. Precisamos de mais atenção do Judiciário e polícia aos relatos de agressões contra mulheres. Ainda que a gente queira e vá falar sobre a beleza da arte e do trajeto, precisamos alertar nossa sociedade que o errado não é uma mulher fazer seu caminho sozinha. O errado é este caminho ser interrompido. Isso é que não pode mais acontecer. E lembrar à toda mulher que se sente ameaçada, ligue 180.”
Bicicletada em Porto Alegre
Ciclistas de todas as regiões do país e também do exterior vão realizar 'bicicletadas' nesta semana em homenagem a Julieta Hernández. A maioria das manifestações vai acontecer na próxima sexta-feira (12), como no caso de Porto Alegre.
"O que queremos, neste ato do dia 12, é dar mais um passo em direção à isto que nos parece ainda utópico: a liberdade da mulher poder ir e vir em segurança. Em um mundo mais doce para nós", comenta. "Será uma homenagem internacional, do tamanho que ela merece. Nós não vamos parar o Brasil. Vamos colorir o Brasil. E quem sabe despertar para a nossa responsabilidade sobre a segurança das mulheres e dos ciclistas neste país”, pondera.
Uma das coordenadoras da atividade em Porto Alegre, Carina comenta que a comoção que movimenta o Brasil todo e que se espalha pelo mundo é reflexo da grandeza da Julieta. “Uma artista de rua, palhaça, artesã. Que exercia seu trabalho fora das grandes mídias, indo em comunidades e pequenas cidades, Julieta conseguia tocar profundamente à todos que a conheceram. Julieta era uma multi artista. Completa. Era palhaça, artista de rua, bonequeira, artesã, musicista e lutier! O cuatro que ela utilizava, fora feito por ela mesma”. Cuatro é um violão de quatro cordas, muito utilizado na Venezuela.
Em Porto Alegre, a pedalada acontecerá na Cidade Baixa, a partir das 19h, saindo do Largo Zumbi dos Palmares. No retorno haverá exposição de gravuras e desenhos feitos em homenagem à Julieta, feitos por artistas de todo o Brasil e Venezuela, seguido de performances de circo, música e teatro.
“Será um evento para todos que quiserem participar, com ou sem bike. Quem não tem o hábito de pedalar pela cidade, pode ser uma oportunidade de não ir sozinho dar o primeiro pedal. Quem não tem bike, pode acompanhar as intervenções artísticas”, expõe Carina.
Na capital gaúcha a ação é um ato coletivo, organizado de maneira horizontal. “Nos juntamos no Whatsapp e lá estamos levantando ideias para ações. Não há um organizador, todos temos vozes e espaços. E quem quiser prestar sua homenagem, pode entrar em contato pelo instagram @pedaldasgurias e ou @circopoa e estar presente nesta sexta feira”, convida.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira
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