Maria Dalben*
Agência UEL
Durante o tempo de leitura dessa matéria, uma mulher será vítima de feminicídio ao redor do mundo. Até o fim do dia, outras quatro terão suas vidas roubadas apenas por existirem e até o Dia Internacional da Mulher, nesta sexta-feira (8), outras 10 perderão a vida. Em 2023, no Brasil, foram identificados 1706 casos de feminicídio consumados e 988 feminicídios tentados, que totalizam 2694 casos, segundo levantamento realizado pelo Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB), uma iniciativa do Laboratório de Estudos de Feminicídio (Lesfem) da UEL em conjunto com a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
No período de 1° de janeiro a 31 de dezembro de 2023, foram monitorados casos de feminicídio consumados e tentados em todo o território nacional a partir do registro e análise de notícias veiculadas na internet em diversos veículos de comunicação. A equipe do projeto, coordenada pela professora do Departamento de Ciências Sociais (CLCH) Silvana Mariano, atuou com 5 integrantes no processo de pesquisa e levantamento de dados. Nas etapas de revisão, tabulação e produção do projeto gráfico do informe, 11 pessoas compuseram o conjunto.
“Nós conseguimos fazer muito com relativamente pouco, uma vez que se tenha um método de trabalho que seja eficiente”, pontuou Silvana. Após um trabalho que se alongou por um ano e dois meses, o Informe Feminicídios no Brasil 2023 foi publicado nesta terça-feira (5), no site do Lesfem e está disponível para todo o público.
Um fenômeno social
“O feminicídio, antes de ser um caso jurídico, é um fato social”. A explicação de Silvana é comprovada pelas análises apresentadas no Monitor. A média diária de vítimas de feminicídio consumado no Brasil é de 4,7, número considerável, mas que nem sempre concorda com os parâmetros da legislação. A coordenadora exemplifica com um dos casos levantados, que, segundo a classificação oficial do Ministério Público (MP), foi considerado um ato de latrocínio (roubo seguido de morte).
“Aplicando as direções que seguíamos dos protocolos das Diretrizes Nacionais, ao nosso ver, foi um caso de feminicídio. Esse é um exemplo que evidencia que existirão divergências entre nós e a polícia e entre nós e a classificação do Ministério Público, pois não usamos meramente uma análise política, mas também uma análise sociológica do crime”
Silvana Mariano, coordenadora do Lesfem.
Os casos de feminicídio estão altamente ligados ao cotidiano feminino e às funções designadas às mulheres na sociedade. A partir dos levantamentos do Monitor de Feminicídio, os dias de maior ocorrência dos crimes são sábado e domingo, com uma média de 5,4 e 5,6 mulheres mortas, respectivamente. Dias de maior convivência familiar e com mais atividades de lazer e entretenimento resultam em mais casos de feminicídios, justamente por proporcionarem um contato mais intenso com os agressores, muitas vezes companheiros ou familiares.
É inviável, entretanto, traçar um perfil específico das vítimas de feminicídio. Como aponta o documento, “todas as mulheres, independentemente de sua condição ou identidade, podem ser vítimas de violência de gênero”. O que é possível é compreender que certos grupos de mulheres estão mais vulneráveis a esse tipo de violência, seja por fatores socioeconômicos, discriminação racial, étnica ou orientação sexual.
A linguagem da violência
A violência enfrentada pelas mulheres não termina nas ações do agressor. Ela continua, sendo reproduzida em portais midiáticos que não raro transmitem a notícia de maneira a perpetuar comportamentos machistas e a expor as vítimas e seus familiares. Segundo Silvana, esse cenário, além de obstruir ações de mudança na sociedade, foi um dos desafios encontrados pela equipe durante o desenvolvimento da pesquisa.
“Um dos casos evidenciou o carro queimado do feminicida pela própria população, revoltada pelo crime. A notícia dá mais destaque para consequência do que para o próprio ato, de forma até que demorou para encontrarmos os detalhes. Em outro que está no informe, o agressor assassinou tanto a mulher quanto o cachorro da família. A morte do cachorro é que foi a notícia. A gravidade da violência é muito aliviada”.
Silvana Mariano, coordenadora do Lesfem.
A linguagem das matérias jornalísticas foi um obstáculo que demandou esforço e aprendizado da equipe, que tinha que se basear em muitas notícias de um mesmo caso para detectá-lo e analisar a maior quantidade de dados possível. Para Silvana, além de um desafio, o processo resultou em avanço. O aperfeiçoamento deu-se graças à colaboração com o MundoSur, associação civil que denuncia e torna visível a violência de gênero na América Latina. “Com isso, nós tivemos um outro salto de qualidade discutindo com as colegas da América Latina as variáveis a serem registradas, o método de registro, então são parceiras valiosíssimas para nós”
“Precisamos lidar com um volume muito grande de casos, esses que nós ainda conseguimos detectar. Um universo de casos ainda continua na escuridão para nós. Isso tudo com uma certa escassez de recursos, criamos um banco de dados robusto que nos orgulhamos muito e agora o desafio é gerar análises a partir desse banco. Mergulhando nele, podemos fazer muito mais em termos de produção de informação”, esclareceu a coordenadora.
Uma missão corajosa
Durante a elaboração do Monitor de Feminicídios, não houve um único dia em que as pesquisadoras não terminassem seu trabalho horrorizadas. Horrorizadas com a violência e sua quantidade exorbitante, cotidiana e cultural em todos os quatro cantos do país. “É um trabalho que tem um custo emocional altíssimo de ser feito. Em um dia podíamos percorrer mais de uma centena de notícias, até porque, um mesmo caso pode gerar várias notícias por muitos dias. O volume de material é grande e as formas de cometimento desses crimes são hediondas. A cada dia tem uma circunstância que nos choca. É muito sofrido”.
Desenvolver um documento que lida com um assunto de tal sensibilidade como é o feminicídio demanda coragem. A professora relata exemplos em que os corpos das vítimas nem podiam ser reconhecidos, tamanha a barbaridade do crime. Por isso, segundo ela, “um dos desafios que temos para manter e conservar a equipe em atuação é encontrar pessoas que tenham a condição de lidar com o peso emocional que este trabalho requer”.
Os entraves são diversos, mas os resultados são promissores. A partir da produção e divulgação de dados, é possível incentivar a compreensão que o público possui sobre a complexidade do fenômeno e mesmo sobre o escopo do problema. “Os dados têm poder”, afirma Silvana, “para a construção de uma conscientização de que esse é um problema grave para a nossa sociedade, e não casos isolados ou situações extraordinárias. Infelizmente, isso é o ordinário”.
Ainda segundo a pesquisadora, em termos globais, considera-se que a produção de dados sobre o feminicídio é uma das medidas relevantes para o enfrentamento do fenômeno. Com isso, o projeto está longe de ser finalizado e continua a todo vapor no ano de 2024. “Com o fechamento desse mês de fevereiro, já temos mais de 600 casos entre consumados e tentados até agora. Na medida em que nós vamos aperfeiçoando o sistema de detecção, nós chegamos a um número maior de casos e o trabalho é aumentado”, comentou.
A perspectiva é lançar relatórios semanais e traçar comparativos com os números de 2023. A partir de tais levantamentos, será possível o “reconhecimento de que o feminicídio é um problema que está incrustado no nosso cotidiano e com isso fomentar a urgência de dar uma resposta e buscar mudança”.
*Estagiária de Jornalismo na COM/UEL.