Abril representa o marco da maior mobilização indígena no país. Em duas décadas, encontro incorporou múltiplas pautas, além da luta pela terra. Lideranças apostam: edição de 2024 será “a mais participativa de toda a história”
Publicado 02/04/2024 às 19:39
Por Nicoly Ambrosio, no Amazônia Real
Em abril, o Acampamento Terra Livre (ATL) completa 20 anos de contribuição e participação na luta histórica pela garantia dos direitos dos povos originários do Brasil. Considerada a maior assembleia dos povos e organizações indígenas do país, a mobilização surgiu como uma forma de protestar contra a política indigenista vigente na época do segundo ano do primeiro mandato do governo Lula (PT), em 2004. Até hoje, no terceiro governo de Lula, os indígenas seguem lutando pela demarcação dos seus territórios.
Organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a mobilização acontece todos os anos, sempre no mês de abril, em Brasília (DF). O primeiro ATL nasceu como uma ocupação realizada por povos indígenas do Sul do país, principalmente os Kaingang e os Guarani. Eles se instalaram na frente do Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios, com apoio de lideranças e organizações indígenas de outras regiões, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
Naquela época, o ATL teve adesão dos Macuxi, Wapichana, Ingarikó e Yanomami, de Roraima, dos Kaingang e Guarani, do Rio Grande do Sul, dos Potiguara, do Rio Grande do Norte, e dos Apurinã, do Acre. A ocupação dos indígenas foi a materialização de um protesto do movimento indígena nacional contra a falta de resultados da Nova Política Indigenista, estabelecida no período eleitoral com o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, e concretizada no Caderno Povos Indígenas do Programa Lula Presidente. Os acampados ocuparam o salão verde do Congresso Nacional e reivindicaram a retomada de diálogo e negociações com o governo.
Entre outras demandas, as ações priorizavam a demarcação de terras indígenas, a criação do Conselho Superior de Política Indigenista e a contenção de invasões dos territórios e do aumento da violência contra os povos indígenas, além de assegurar a participação dos povos na discussão das políticas que dizem respeito a eles.
Lula fez muitas promessas, mas não estava cumprindo nenhuma, relembrou em entrevista à Amazônia Real o líder indígena e ex-coordenador da Coiab, Marcos Apurinã, do Amazonas. “Infelizmente, naquele ano, nós não tivemos êxito. Não foi cumprido o que o presidente Lula prometeu, não foi cumprida a demarcação do nosso território, a nossa vida ficou ameaçada e muito vulnerável. Nossos direitos ficaram ameaçados e a gente sempre teve uma arma muito importante, que é se mobilizar e ir para a rua”.
As mobilizações de base, ou seja, as mobilizações locais e regionais, como a Coiab e a Apoinme, além de lideranças como Marinaldo Macuxi, Júlio Macuxi, Jecinaldo Sateré-Mawé (coordenador da Coiab entre 2003 e 2004), Maninha Xucurú Kariri e Maria Miquelina Tukano, estavam à frente das lutas que incidiram na posterior criação do Acampamento Terra Livre. Em Manaus, a insatisfação com a falta de preocupação do governo com as demandas dos povos indígenas também gerou protestos públicos, como a queima da bandeira do Partido dos Trabalhadores (PT) pelos indígenas na Praça do Congresso, no centro da capital.
“Nós entregamos nossas propostas ao presidente Lula e era essa uma garantia de que ele pudesse trabalhar o direito dos povos indígenas no Brasil. Era uma aliança que nós tínhamos tratado ali e ele não cumpriu, então nós tivemos que quebrar essa aliança queimando a bandeira do PT em praça pública. Foi assim que a gente deu a nossa resposta ao governo federal naquela época”, lembra Marcos Apurinã.
No início dos anos 2000, a Coiab abriu um escritório de representação em Brasília, que se tornou um espaço de acolhida para as lideranças que chegavam da Amazônia para audiências públicas nos ministérios ou no Planalto. “O escritório da representação da Coiab foi um elo de ligação e articulação das iniciativas e organizações que surgiram no país, e aos poucos as lideranças decidiram se reunir e discutir a luta indígena como um todo e, particularmente, um acampamento”, declarou o jornalista e liderança Paulino Montejo.
Em agosto de 2004, a Coiab e a Apoinme publicaram um manifesto contra a política indigenista no Brasil e ressaltaram a preocupação diante do “descaso, da morosidade, omissão e conivência explícita do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. A Coiab foi uma das primeiras organizações indígenas formais do Brasil, criada em 1989, seguida pela Apoinme, em 1990.
Paulino Montejo, líder indígena da etnia Maia, da Guatemala, foi assessor da Coiab e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) por muitos anos. Na sua visão, a chegada de Lula ao poder, em 2002, gerou muitas expectativas por parte dos povos indígenas do Brasil, que contribuíram para a construção de propostas políticas públicas pelos direitos originários.
“Naquele tempo, eu era assessor de comunicação na Coiab e outras coisas, como assessor político e articulador. Nós entregamos ao então candidato Lula parte das propostas sobre a política indigenista, que envolve a questão territorial, educação, saúde, desenvolvimento sustentável e economia indígena. Mas se passou um ano e não percebemos clareza no que o governo ia propor em termos de políticas para os povos indígenas”, recorda.
Nesse contexto, explica Montejo, a preocupação, as expectativas e as frustrações acompanharam os “parentes” do Sul do país, que promoveram uma ocupação articulada por eles mesmos, com apoio de organizações da Amazônia e do Nordeste. No início do governo Lula já havia uma aproximação entre as lideranças indígenas de distintas regiões do país, embora não existisse uma só organização que as reunisse.
Assim, o ATL inaugurou um marco histórico para o movimento indígena e possibilitou formalmente a criação da Apib, em novembro de 2005, deliberação política tomada pela assembleia daquele ano. “As lideranças decidiram chamar por Acampamento Terra Livre porque nós sabemos que, mesmo com o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, principalmente territoriais e de identidade e autonomia, na Constituição de 1988, os direitos continuavam e continuam a ser violados e desrespeitados”, enfatiza Paulino Montejo.
“A gente reúne o Brasil, os 305 povos indígenas, e vai a Brasília para discutir a vida e a continuidade da sobrevivência dos povos indígenas, sejam os que estão nas periferias das grandes cidades ou nas aldeias. Isso tudo é discutido nessa grande casa de saberes. Nós descobrimos que precisávamos desse espaço para poder discutir os direitos dos territórios para os povos indígenas”, diz Marcos Apurinã.
Legado histórico
O encontro já incorporou e defendeu diversas pautas do movimento indígena ao longo dos anos, desde o combate ao governo Bolsonaro, lançamento de candidaturas indígenas e a defesa pela demarcação dos territórios, até a criação de uma plenária exclusiva para discutir os direitos e a luta dos indígenas LGBTQIPAN+.
“Até hoje, o tema da demarcação sempre foi uma pendência. Esse espaço do ATL tornou-se como uma terra demarcada pelos povos, que a cada ano foi crescendo e as reivindicações foram se ampliando”, ressalta Paulino Montejo, que defende ainda a relação de respeito com a natureza que os indígenas priorizam em seus territórios ancestrais.
“É totalmente diferente da sociedade não-indígena a nossa conexão com a terra. A terra não é apenas um instrumento ou um objeto que você explora e suga, pelo contrário. A relação dos povos indígenas com a terra é uma relação umbilical e espiritual. Por isso que a gente fala não apenas de terra, a gente fala de território, porque a dimensão é outra”, destaca.
Em 2005, após a histórica mobilização indígena, um decreto assinado pelo presidente Lula homologou a Portaria nº 534, do Ministério da Justiça, que demarcou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O movimento indígena acolheu a vitória, mas não mudou a crítica voltada à maneira como a política indígena era implementada no país.
Um dos problemas apontados era o descaso da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério da Justiça na garantia dos direitos territoriais indígenas, o que resultou em obstruções aos procedimentos de regularização de terras indígenas e na lentidão no cumprimento dos direitos das populações.
Marcos Apurinã afirma que a demarcação de territórios continua sendo a principal pauta do ATL. “A pauta que não sai da nossa mente é a demarcação, porque têm muitos territórios para ser demarcados com este governo. A gente pretende somar forças e reivindicar. Nós precisamos de terras indígenas demarcadas, respeitando o direito de todo ser vivo que existe naqueles territórios. A questão ambiental é muito séria, ela precisa ser discutida, como o desmatamento. Nós perdemos milhões de hectares, que estão sendo destruídos pelos pecuaristas, pelos garimpos e também pelo agronegócio, isso não é permitido”, denuncia.
Além dos direitos básicos e das políticas públicas específicas diferenciadas para educação, moradia e desenvolvimento sustentável, vieram lutas por outros direitos, como o respeito à Consulta Livre, Prévia e Informada (direito dos povos indígenas de serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens e direitos).
A mobilização dos indígenas durante o ATL trouxe significativas conquistas ao longo dos anos, como a criação do Conselho Nacional da Política Indigenista (CNPI), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGATI) e da participação de representantes dos povos indígenas em instâncias ou colegiados que tratam assuntos de seu interesse, relacionados com a promoção e efetivação de direitos fundamentais.
No entanto, essas conquistas foram restringidas e suprimidas pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (2019-2022), que, de acordo com Paulino Montejo, adotou uma política de morte contra os povos indígenas do Brasil. “Esse governo impediu a implementação dessas conquistas que os povos indígenas lutaram por tantos anos, seja através de um trabalho de ‘formiga’, com as iniciativas e articulações de base, ou que foram resultado de grandes mobilizações como o ATL”.
A liderança Marcos Apurinã analisa que os povos indígenas da Amazônia brasileira se fortaleceram por meio do ATL, porque a mobilização trouxe informações e garantias dos direitos indígenas.
“Nos apoderamos desse direito garantido pelos tratados e pela Constituição, porque muitas das vezes também não conhecíamos o direito que a gente tinha, nossos caciques estavam sempre sem informação, então o ATL nos deu força. Força para as lideranças, mulheres e jovens lutarem pelos seus direitos”.
Ele lembra que, depois do nascimento do protesto, um dos momentos mais marcantes foi quando o ATL foi realizado fora de Brasília, em 2009, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. ”Nós tivemos a coragem e a estratégia de ir lá e mostrar que estamos vivos e vamos brigar pelos nossos direitos, onde nossos irmãos Guarani-Kaiowá sofrem muito massacres e assassinatos”, afirma. “Eu destaco essa importância do ATL ir para a base, pois é na base onde estão os problemas e podemos mostrar que vamos lutar”.
Sobre o legado da mobilização, Paulino Montejo reforça que os povos indígenas mostraram em todos esses anos, desde a invasão colonial, que são sujeitos políticos e têm capacidade de ser protagonistas de seu próprio destino. “Temos a capacidade de definir a nossa própria vida e de defender a vida das futuras gerações com a nossa própria vida. Esse exercício protagônico dos povos indígenas é uma demonstração de que são autônomos e têm capacidade de construir um projeto de vida nos seus territórios de acordo com suas próprias visões”, diz o articulador indígena.
Mulheres estiveram à frente
Importantes lideranças femininas estiveram à frente das lutas em seus territórios originários, que culminaram na criação do Acampamento Terra Livre e da Apib no começo dos anos 2000.
Maria Miquelina Barreto Tukano, ex-secretária geral da Coiab em São Gabriel da Cachoeira (AM), e Maninha Xukuru Kariri, cofundadora da Apoinme, intelectual, feminista e liderança falecida em 2006, da Mata da Cafurna, Terra Indígena Xukuru Kariri, em Palmeira dos Índios (AL), foram as únicas mulheres que assinaram o manifesto de repúdio das organizações contra as políticas indiferentes e estagnadas do governo Lula aos povos indígenas do Brasil em 2004.
Direitos indígenas ainda são violados
Militante social indígena, advogado e Coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá acredita que os povos indígenas sempre tiveram relações conflituosas com todos os governos e no governo Lula não foi e não está sendo diferente. “Nós temos promessas não cumpridas e relações profissionais com alguns ministérios bastante tensionadas. Mesmo sendo um governo de esquerda, um governo progressista, existem posicionamentos de ministérios que tem suas autonomias de atuação e que não agregam e não dialogam com a pauta indígena”, diz.
Sendo assim, Dinamam Tuxá afirma que o movimento indígena faz enfrentamentos a qualquer retrocesso que seja imposto por qualquer governo, seja de direita ou de esquerda. “Nós vamos continuar fazendo enfrentamento, principalmente em favor dos direitos dos povos indígenas, e lutar pela demarcação e fiscalização de políticas públicas para todos os territórios indígenas, de todos os biomas brasileiros”.
A liderança Marcos Apurinã concorda e complementa: “Mesmo o governo [Lula] sendo favorável e sendo um governo que oportunizou, através da luta dos povos indígenas, grandes espaços históricos na área executiva, é importante frisar que o movimento não para. Nós temos que marcar presença. Não é porque o governo que está aí é favorável aos povos indígenas que a gente tem que relaxar. Porque as políticas públicas indigenistas estão andando, e se a gente não vigiar a gente pode perder. Temos que reivindicar nosso direito, porque o direito está ameaçado mesmo com esse governo. A gente não pode fechar os olhos, temos que estar na luta vigiando todo dia”.
ATL em 2024
Pela necessidade de continuar mobilizada diante dos ataques contínuos aos direitos dos povos indígenas, a Apib, juntamente com a Apoinme, Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul), Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (Arpinsudeste), Comissão Guarani Yvyrupa, Coiab, Conselho do Povo Terena e Assembléia Geral do Povo Kaiowá e Guarani (Aty Guasu), convocou as lideranças e movimentos de base para estarem presentes no acampamento deste ano, que acontecerá entre os dias 22 a 26 de abril em Brasília.
A expectativa é que o ATL 2024 seja o mais participativo de toda a história das mobilizações indígenas, tanto em número de pessoas quanto em representatividade de povos. Em 2023, cerca de seis mil indígenas de 180 povos participaram da 19ª edição da mobilização, norteada pelo lema “O Futuro Indígena é hoje. Sem demarcação não há democracia!”, que marcou o retorno das demarcações das terras indígenas após seis anos de paralisação política dos processos.
“Esse ano está acontecendo uma grande mobilização para o ATL, desde campanhas nas redes sociais com a captação de recursos e até mesmo movimentações dentro das terras indígenas, para que cada território e cada povo consiga se articular e se mobilizar com seus parceiros para chegar a Brasília e somar a luta dos 20 anos do Acampamento Terra Livre”, afirma o Coordenador da Apib, Dinamam Tuxá.
Pela ocasião dos 20 anos de luta pela demarcação dos territórios indígenas, Dinanam é categórico em dizer que “sem sombra de dúvida, vamos cobrar mais políticas públicas do governo. Políticas que nós acreditamos serem de fundamental importância para a manutenção da vida dos povos indígenas e seus territórios”.
Em breve será divulgada a programação completa do evento, que tem previsão de chegada das delegações nos dias 20 e 21 de abril, seguida pelas discussões das principais pautas entre os dias 22 a 26, e com retorno de todas as delegações para os seus territórios a partir do dia 27 de abril.
Os documentos finais de cada um dos ATLs apresentam a leitura política do movimento sobre os governos Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. O objetivo é o posicionamento do movimento indígena sobre o processo de desmonte das políticas e estruturas indigenistas do Estado. Há também a preocupação em registrar reiteradamente as demandas e reivindicações históricas, focadas principalmente no direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, no direito e exercício de sua autonomia, assegurados pela Constituição, e pelo fim do indigenismo tutelar, autoritário e integracionista.
“É importante que o acampamento reúna as mais diversas etnias indígenas do Brasil e deixe entender que a luta por território e direitos dos povos indígenas não é apenas de um povo. A luta não é uma questão só da aldeia e questão regional, mas é até internacional. Eu quero ver daqui outros 20 anos as futuras gerações celebrando os 40 anos de Acampamento Terra Livre”, finaliza o líder indígena Paulino Montejo.