Os recentes escândalos de violências sexuais que afetam a Igreja da França unem as diferentes correntes do catolicismo francês na mesma indignação e tiram ao episcopado toda legitimidade de se fazer escutar, acredita a socióloga.
Céline Béraud é socióloga e professora (Directeur d'études) na Ecole des Hautes Etudes em Ciências Sociais. Especialista em questões de gênero e sexualidade no catolicismo, publicou em 2021 Le Catholicisme français à l'épreuve des escândalos sexuels (Seuil). Em sua opinião, a atual crise da Igreja é certamente a pior entre aquelas vividas até agora, pelo menos no que diz respeito à França.
A entrevista é de Gaétan Supertino, publicada por Le Monde, 22-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Diante das violências sexuais, a Igreja da França está passando por uma virada em sua história?
Desde a década de 1990, o centro de gravidade do catolicismo francês mudou de uma linha que colocava as questões de ordem social em primeiro lugar para uma linha mais conservadora centrada em questões de gênero e de sexualidade. O “Manif pour tous” tornou evidente essa mudança no espaço público.
A Igreja Católica quis atuar como uma barreira contra a reconfiguração das normas sexuais. Dizia ser atacada pelo "feminismo radical", pelos "lobbies LGBT" e pelos grupos que queriam minar a moral tradicional. Penso que os escândalos sexuais colocarão um fim a tudo isso, porque mostram que as questões de gênero e de sexualidade também estão presentes em seu interno: não se trata apenas de um problema que diz respeito aos poderes públicos e o status do casamento e da família.
Esses escândalos abalam o catolicismo francês. Não é irrelevante que tenha sido o semanário Famille Chrétienne, notoriamente conservador, que revelou o caso Santier [o bispo sancionado por Roma levar jovens a se despirem durante o sacramento da confissão]. Hoje a mesma indignação é compartilhada, tanto por católicos "reformistas" quanto por "conservadores", tanto por fiéis quanto por padres, por religiosos e religiosas. Alguns se encontram em coletivos como Agir pour notre Eglise.
Quais foram as etapas dessa tomada de consciência coletiva?
O escândalo estourou no final de 2018 e início de 2019, começando com o caso Preynat [sacerdote de Lyon condenado em 2020 por agressões sexuais cometidas contra escoteiros, comportamentos de que o cardeal Barbarin e os seus antecessores tinham conhecimento], com uma série de revelações, seguidas do filme Grace a Dieu, de François Ozon e o chocante documentário sobre as religiosas abusadas, em março de 2019, no Arte.
A emoção coletiva foi revivida no outono de 2021, quando foi entregue o relatório da comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (Ciase). E, no início de novembro deste ano, das revelações sobre membros do episcopado. Entre os bispos, estavam envolvidos também o bispo emérito de Créteil e o cardeal Ricard, que foi presidente da Conferência Episcopal da França de 2001 a 2007 – um ponto cego no relatório Sauvé que mencionava apenas padres e religiosos entre os perpetradores de violências sexuais. Tudo isso gerou mais indignação.
Você diz que essa indignação é compartilhada, mas o mesmo pode não acontecer com as respostas a serem dadas. Que diferentes opções são propostas para sair da crise?
As expectativas sobre o que os bispos devem fazer são amplamente compartilhadas: completar a obra de verdade iniciada com a Ciase e superar a atitude de silêncio conivente. Pede-se que assumam suas responsabilidades e implementem integralmente o percurso de reparação iniciado em novembro de 2021, e que finalmente façam reformas.
Claro que as reformas que se esperam, tanto em termos da sua extensão como das áreas que deveriam abranger, variam significativamente segundo os pontos de vista. Além das medidas de tolerância zero que encontram consenso, outras afetam modalidades de exercício da autoridade dentro da Igreja e a sexualidade. A questão do acesso dos homens casados ao presbiterado e das mulheres à ordenação volta a ser considerada por alguns. Outras vozes, mais tímidas ou que, pelo contrário, se consideram mais radicais, não pretendem tocar nas modalidades de acesso aos ministérios ordenados, mas sim repensar em profundidade a relação entre clero e leigos, e o modo de considerar a comunidade.
Quais são os riscos para o catolicismo francês?
A questão central que a Igreja da França enfrenta hoje é saber como o episcopado conseguirá sair de um sistema que permite tais violências. Que desqualificam qualquer discurso moral da Igreja, qualquer capacidade dos bispos de dizer o que é bem e o que é mau, e não apenas em matéria de moral sexual. Eles perderam a credibilidade.
Isso foi visto durante a assembleia geral de outono dos bispos em Lourdes, cuja agenda foi revirada pelos escândalos. Em seu discurso de encerramento, Eric de Moulins Beaufort, presidente da Conferência Episcopal da França, falou sobretudo dos últimos escândalos, que denunciou com firmeza. Ele expressou sua "humilhação" e fez um ato de contrição. Esperava-se que se manifestasse sobre o tema do fim da vida, uma vez que a questão voltou a estar na ordem do dia dos parlamentares, após o parecer da Comissão
Nacional de Ética de 13 de setembro, que abriu caminho à possibilidade de uma “ajuda ativa para morrer”.
O presidente da Conferência Episcopal certamente disse algumas palavras, assim como mencionou a necessária conversão ecológica na abertura da COP27 e a guerra na Ucrânia. Mas esses temas chegaram ao fim de seu discurso e foram praticamente submersos pelo restante da atualidade católica dominada pelos escândalos sexuais.
Até porque os escândalos sexuais já chegam num contexto de crise...
Efetivamente. Muitas vozes, principalmente do lado conservador, se escondiam atrás de um discurso do tipo: “A Igreja já viu pior”. Mas hoje a situação é realmente crítica no catolicismo francês. É uma crise que se insere em uma história muito longa, aquela da diminuição contínua do número de pessoas que se declaram católicas, daquelas que praticam e do número de padres.
Além disso, a Covid19 também teve uma certa influência. Durante a crise sanitária, o culto foi suspenso por várias semanas, depois a participação presencial foi limitada. Certas pessoas, muitas vezes idosos que frequentaram a igreja por toda a vida, desde então se sentem no direito, mesmo depois que as restrições foram suspensas, de não ir mais à missa.
Por fim, há também um problema financeiro. Eric de Moulins Beaufort disse isso explicitamente em seu discurso, convidando os bispos a prever uma diminuição em seus recursos. Os fiéis, chamados como todos os anos a fazer a sua oferta à Igreja, correm o risco de não querer mais dar dinheiro a uma instituição na qual não têm mais confiança.
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