Comissão Independente mergulhou sobre arquivos desde 1950, mas muitos casos foram ocultados por superiores. Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa pede perdão às vítimas
Lisboa — Numa tentativa de acerto de contas com a história, a igreja católica de Portugal abriu seus arquivos para uma profunda investigação sobre abusos sexuais de crianças nos últimos 72 anos. Segundo a Comissão Independente que analisou todas as informações disponíveis, 512 casos efetivos foram registrados, mas estima-se que ao menos 4.815 meninos e meninas de até 18 anos teriam sido vítimas de violência sexual de religiosos. Presente na divulgação dos dados, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, dom José Ornelas, disse que “a situação é dramática, uma ferida aberta que dói e envergonha”. Ele pediu perdão a todas as vítimas.
Segundo Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, apesar de todos esses casos, apenas 25 serão encaminhados ao Ministério Público para possível abertura de inquéritos. Para Álvaro Laborinho Lúcio, também da comissão, infelizmente, a maioria dos casos prescreveu e não há como ultrapassar os limites da legislação. A lei portuguesa prevê que denúncias de abuso sexual só podem ser feitas até as vítimas completarem 23 anos. O ideal, no entender dele, é que a Assembleia da República amplie esse limite para 30 anos ou mais.
Tanto Strecht quanto Laborinho ressaltaram que, ao longo dos trabalhos de pesquisas, percebeu-se enorme disposição da igreja em ocultar as denúncias de pedofilia. Por isso, disseram, esse foi apenas o começo de um processo para dar visibilidade ao que se tentou esconder por tantos anos. Os relatos colhidos vão de 1950 em diante e chocam pelas crueldades cometidas por padres, freiras e professores de colégios católicos. Das vítimas ouvidas pela Comissão Independente, 52,7% são do sexo masculino e 42,2%, do feminino, detalhou Felipa Tavares, ao apresentar a pesquisa. Hoje, essas pessoas têm, em média, 52,4 anos, sendo que 88,5% delas moram em Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Leiria.
O levantamento aponta, ainda, que 53% das vítimas de abusos se dizem católicas e 25,8% são praticantes. São pessoas, em boa parte, bastante qualificadas: 32,4% têm licenciatura e 12,9%, pós graduação. Quanto foram abusadas tinham, em média, 11,2 anos. O maior número de denúncias se concentra entre os anos de 1970 e 1990. Entre os meninos, houve relatos de sexo anal, manipulação dos órgãos genitais, sexo oral e masturbação. No caso das meninas, a predominância foi de manipulação dos órgãos genitais. Os abusos foram cometidos, principalmente, em seminários (23%), igrejas (18,8%), confessionários (14,3%), casas paroquiais (12,9%) e escolas católicas (6,9%).
Os abusadores se aproveitavam da vulnerabilidade das famílias — muitas delas viviam na pobreza — e da proximidade com as vítimas. A comissão não revelou o total de criminosos, mas se sabe que vários deles repetiam os crimes com as mesmas vítimas e outras pessoas. A pesquisa também revela de 43% dos ouvidos falaram sobre os abusos pela primeira vez. E relataram traumas que carregam até hoje. Integrante do grupo que vasculhou os arquivos da igreja, o psiquiatra Daniel Sampaio, destacou que as sequelas são profundas, como depressão, tentativas de suicídio, ansiedade e transtornos do sono e alimentares.