Quase lá: Como estereótipos de gênero e sexualidade afetam nossa percepção da voz do(a) outro(a)?

Pesquisa analisou variações sociolinguísticas em falas masculinas e como elas podem influenciar a impressão que temos dos falantes. E comprovou: o preconceito está em quem ouve

 Publicado: 30/01/2024
 
Pesquisadora da USP realizou experimento com gravações de vozes masculinas - Foto: Arte sobre imagem Freepik

 

A maneira como as pessoas percebem a voz e a fala de alguém pode dizer muito mais sobre os preconceitos dos ouvintes do que sobre atributos pessoais do próprio falante. Uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP fez um experimento com um grupo de entrevistados para analisar como características específicas de vozes masculinas afetam as avaliações sobre os falantes. O objetivo do estudo foi entender como as percepções dos ouvintes estão ligadas a estereótipos de gênero e sexualidade.

A pesquisadora Isabel Pie de Lima e Souza estudou a percepção sociolinguística de três variáveis: a concordância nominal de número (quando falamos “as casas” ou “as casa”, por exemplo); a frequência fundamental da voz (mais fina ou mais grossa); e a duração do S na pronúncia das palavras. De acordo com a pesquisadora, estudos anteriores mostram que essas três variáveis estão ligadas à percepção de gênero e sexualidade. Por exemplo, existe uma percepção estereotipada de que homens gays ou afeminados falam mais fino, ou com um S mais alongado nas palavras.

No experimento, os entrevistados ouviram gravações de falas de quatro homens e precisaram avaliar o quão “gay” e “afeminadas” eles achavam que as vozes soavam. Isabel explica que a pesquisa não foi sobre “um jeito gay de falar”, mas sobre como as pessoas percebem e entendem as três variáveis em relação a gênero e sexualidade.

Ela acredita que a pesquisa ajuda a entender melhor como funcionam esses estereótipos sociais em relação às variáveis sociolinguísticas. “Isso nos faz mais conscientes em relação a preconceitos, e em como os preconceitos e os estereótipos sociais agem e são criados a partir da linguagem”, afirma a pesquisadora.

 

O experimento

Ilustração: Freepik

Variável 1: concordância nominal

Em uma pesquisa anterior, o professor Ronald Beline Mendes, docente do Departamento de Linguística da FFLCH, estudou casos em que a concordância nominal estava ligada a uma percepção sociolinguística de classe social e escolaridade. Naquele estudo, o professor Ronald observou que pessoas que não utilizam a concordância padrão (“as casa”, por exemplo) eram percebidas como indivíduos de classes sociais mais baixas e menor escolaridade. Curiosamente, pessoas que usam a concordância padrão (com plurais “as casas”) foram percebidas como gays e afeminadas.

Isso despertou o interesse de Isabel: “É um resultado inesperado, que a gente não imaginava que fosse acontecer, justamente por causa desse significado mais óbvio ligado à escolaridade”, conta ela. Porém, testando a mesma variável em sua pesquisa, ela encontrou um resultado diferente. “Os homens foram percebidos como mais gays e afeminados na variante não padrão, ou seja, quando eles não faziam a concordância certinha”, conta a pesquisadora.

Ela explica que utilizou os mesmos trechos de áudio de seu orientador, mas a pesquisa foi feita com um público diferente, cinco anos depois. Além disso, ela aplicou um questionário que aprofundou mais a percepção dos entrevistados.

Variável 2: duração do S

Em relação à duração do S nas palavras, a pesquisadora explica que alguns entrevistados ouviram estímulos em que a letra S era mais curta – tinha 50 milissegundos – e outras pessoas ouviram estímulos em que a duração do S era mais longa – com 70 milissegundos. “E o resultado é que, quando as pessoas ouviam estímulos com a duração mais longa, elas tendiam a perceber o homem ouvido como mais gay e afeminado”, diz Isabel.

“Em inglês, inclusive, existe a expressão ‘gay lisp’, que é um jeito gay de falar o S, que aparece em pesquisas de várias línguas, mas foi mais investigado em inglês. Em português, está começando a ser mais estudado por estudos de percepção. O resultado que eu obtive foi na mesma direção”, complementa.

Variável 3: frequência da voz

Isabel estudou também a frequência fundamental, propriedade acústica que costuma estar por volta de 100 hertz para vozes masculinas e 200 hertz para as femininas. No experimento, os entrevistados perceberam mais as vozes masculinas com frequências aumentadas como gays e afeminadas.

“Uma coisa importante de ter mente é que essa pesquisa toda é sobre pessoas cisgênero, não é sobre pessoas trans. Porque muita coisa seria diferente se fosse sobre pessoas trans. Quando eu falo de valores de frequência base para homem e mulher, estou pensando sempre em pessoas cis”, alerta a pesquisadora.

A dissertação de mestrado Percepção de vozes masculinas: efeitos da concordância nominal, da duração de /-s/, da frequência fundamental e de atitudes sobre masculinidade foi defendida em junho de 2023, no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da FFLCH, sob orientação do professor Ronald Beline Mendes, do Departamento de Linguística.

Por Paulo Andrade, do Serviço de Comunicação Social da FFLCH. Editado por Silvana Salles

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