Pesquisa da USP analisa contraste na abordagem policial entre negros e brancos detidos por drogas e a influência no julgamento dentro dos tribunais
Texto: Lívia Lemos*
Arte: Joyce Tenório**
68,2% da população carcerária é negra, mostra Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2022 - Foto: rawpixel.com/Freepik
O Brasil é o terceiro país do mundo com o maior número de encarcerados. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente existem cerca de 830 mil pessoas privadas de liberdade, sendo a Lei de Drogas a que mais encarcera indivíduos no País. A pesquisa de mestrado de Alessandra Nogueira Lucio, graduada em Direito pela Universidade de Mogi da Cruzes, revelou como essa lei contribui para o encarceramento em massa de pessoas negras e pardas.
“Quando se fala em drogas, o maior número de condenações é de pessoas negras, que constituem 68% da população presa. Os motivos que contribuem para esse número são diversos e vão além do tráfico de drogas em si. Existe uma diferença na abordagem policial entre negros e brancos detidos pelo mesmo crime e o racismo estrutural presente no tribunal”, destaca a advogada.
A pesquisadora salienta a diferença na aplicação da lei entre indivíduos negros e brancos. “Durante minha pesquisa, eu analisei mais 1.700 processos de pessoas detidas por drogas e notei, por exemplo, que um indivíduo branco, quando abordado com a mesma ou mais quantidade de drogas que um negro, muita das vezes, não era condenado.”
Orientada pela professora Maria Angélica Ribeiro, a dissertação intitulada O sistema prisional “uma máquina de moer gente” e a carne predileta continua sendo a negra! O encarceramento em massa da população negra, genocídio negro e sistema de justiça foi defendida por Alessandra em 2023, no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Julgamento parcial: traficante x usuário
Alessandra analisou desde a questão histórica e social desses indivíduos até o processo de julgamento. A pesquisadora chama atenção para a origem e condição social nas quais essa população está inserida, uma vez que esses dois fatores têm grande influência na hora da audiência. Ela destaca que o lugar de maior circulação de drogas são as periferias, onde também reside a maioria da população negra.
“A periferia já é naturalmente vista como um lugar central de tráfico. Então, para a polícia, significa que todo negro, se abordado nesse lugar com droga, ainda que com uma quantidade mínima, já é traficante. Muitas das vezes, o jovem não está cometendo o ato do tráfico, mas o policial não vai olhar para isso”, aponta Alessandra.
Por outro lado, a abordagem e o julgamento policial mudam em um bairro afastado de áreas pobres: “Em um bairro nobre, se um indivíduo é pego com droga, é considerado apenas como usuário e não como traficante”, relata a advogada. A diferença de tratamento e de termos usados pelos policiais são cruciais para o julgamento desses indivíduos dentro dos tribunais.
“Se o jovem negro é detido pela polícia, ao chegar ao sistema de justiça, o que é validado para os juízes é o testemunho do policial. Se o policial falou que ele foi forjado com x quantidade de droga, é isso que vai valer. Mas, para uma pessoa branca, é concedido o direito de explicação, de defesa e de advogado. Além de ser um sistema estruturalmente racista, o Sistema Judiciário também é injusto. A aplicação da lei para brancos e negros não é igual.”
Como a Lei de Drogas contribui para mais negros presos?
Criada em 2006, a Lei de Drogas tem o objetivo de combater a utilização e a comercialização de drogas. Apesar desse esforço, a pesquisadora defende que a forma como a lei é aplicada não combate, de fato, as drogas, mas sim os corpos negros. A lei não determina, por exemplo, uma quantidade mínima de droga necessária para a prisão de um indivíduo. “Sem essa regulamentação, a decisão de condenar ou não o indivíduo fica a cargo do juiz. Ele não vai analisar a questão social do indivíduo, apenas a lei e o testemunho do policial.”
Além da falta de regulamentação, a pesquisadora aponta também para a falta da análise individual de casos negros. “Numa custódia, a questão social do branco é analisada, mas a do negro não. Quando temos um juiz e ele não quer analisar algo que parece óbvio, que é a questão social, não é porque isso não é importante, é simplesmente porque ele tem uma visão racista. ‘Você é negro e cresceu na periferia, é óbvio que você é um criminoso’ .”
Além da classificação de traficante, o tempo de condenação para pessoas negras é maior. “No mínimo, são seis anos de prisão. Se o jovem não estava cometendo o ato do tráfico, mas vai encarcerado injustamente, você comete um genocídio não só com ele, mas também com sua família”, afirma a advogada.
A pesquisadora defende não apenas um julgamento imparcial, mas também uma atenção para a questão social de cada indivíduo e um amparo jurídico por parte das autoridades. “Na maioria das vezes, essas pessoas não terão um advogado. Elas vão precisar de um defensor e nem sempre esse defensor irá poder fazer tanto por ela em comparação com aquela pessoa branca que tem um advogado particular.”
Para que isso aconteça, Alessandra prevê a necessidade de mais pessoas negras adentrarem o Judiciário. “Hoje, temos um sistema de justiça quantitativamente maior de pessoas brancas, que fazem essas leis e as aplicam. Para que o contexto social do negro seja, de fato, levado em conta, é preciso que pessoas negras façam parte também desse sistema.”
*Texto original de Lívia Lemos para a Divulgação Científica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Editado por Guilherme Ribeiro
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado