Para Elisangela Karlinski, proposta faz parte de ofensiva política contra a laicidade da educação. "Afirmar que a Bíblia é o livro mais importante da história da humanidade é uma análise muito subjetiva, que parte de uma premissa de que todos acreditam na história da Bíblia ou na Bíblia como o livro mais importante. Para as pessoas que creem em outras religiões, o livro mais importante pode ser a Torá, pode ser o Alcorão", defende Lisandra Arantes, advogada e conselheira do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).
O deputado distrital Pastor Daniel de Castro (PP) apresentou na última terça-feira (2) um projeto de lei (PL) que propõe incluir a leitura da Bíblia como recurso paradidático nas escolas públicas e privadas do Distrito Federal. Especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato DF consideram a proposta uma afronta à laicidade do Estado e avaliam que o texto faz parte de articulação conservadora nacional feita pela bancada evangélica.
"Seu conteúdo não é inédito", explica Elisangela Mundim Karlinski, advogada, socióloga e especialista em Política e Representação Parlamentar. "Não se trata de uma proposta isolada, mas de uma ofensiva articulada por um grupo político com interesses bastante peculiares e que, historicamente, não se coadunam com o princípio da laicidade do Estado", afirma.
O PL 1040/2024, apresentado pelo parlamentar distrital, traz trechos semelhantes aos de outros projetos propostos em diferentes casas legislativas pelo Brasil. Os PLs discutidos, por exemplo, na Câmara Municipal de Manaus (AM), onde foi aprovado, e na Câmara Municipal de Belo Horizonte (MG), onde segue em tramitação, têm o primeiro artigo e a justificativa com termos idênticos ao do proposto por Daniel de Castro.
Os textos afirmam que o objetivo da proposta é a "disseminação cultural, histórica, geográfica e arqueológica" do conteúdo da Bíblia, "em observância às normas e regras da Constituição Federal". Na justificativa dos projetos, a Bíblia é definida como o "livro mais importante da história da humanidade" e não "unicamente religioso".
"Afirmar que a Bíblia é o livro mais importante da história da humanidade é uma análise muito subjetiva, que parte de uma premissa de que todos acreditam na história da Bíblia ou na Bíblia como o livro mais importante. Para as pessoas que creem em outras religiões, o livro mais importante pode ser a Torá, pode ser o Alcorão", defende Lisandra Arantes, advogada e conselheira do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).
O Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) também se manifestou contrário ao PL 1040/2024. "Determinados deputados se prendem a algumas cortinas de fumaça, que são exatamente para tirar o foco da educação. Onde está a preocupação deste deputado com a estratégia de matrículas? Hoje a gente tem algumas regionais com turmas de educação infantil com até 41 crianças. Onde estão esses deputados para cobrarem, que é o papel do legislativo, fiscalizar o GDF, sobre a questão da falta de merenda nas escolas?", questiona a diretora do Sinpro-DF, Márcia Gilda.
Estado laico
A Constituição Federal de 1988 estabelece que o Brasil é um Estado laico, ou seja, não adota nenhuma religião oficial. Além disso, o texto garante a liberdade de crença e afirma que todas as religiões devem ser igualmente protegidas pelo Estado.
Embora o PL 1040/2024 afirme que a iniciativa "não se contrapõe ao estado laico", já que o propósito "não é impor uma vinculação à crença", especialistas ouvidas pela reportagem discordam da laicidade do projeto.
"O Estado tem que tratar de forma igualmente respeitosa e dar a mesma importância a todas as religiões, crenças ou filosofias que as pessoas acreditam ou não. Desta forma, não é possível eleger um livro que é fundamentalmente um livro religioso para que seja referência nas escolas sem que isso afronte a laicidade do Estado", afirma a advogada do CFEMEA.
Para Elisangela Mundim a proposta "não tem razão de ser", já que não há nenhuma proibição para que a Bíblia componha o acervo das bibliotecas escolares. Além disso, o ensino religioso já integra oficialmente o currículo do ensino fundamental.
"Ainda que a frequência às aulas [de ensino religioso] seja facultativa e que o conteúdo deva respeitar a diversidade cultural religiosa do Brasil, são as religiões cristãs que prevalecem, justamente por reunirem o maior número de fiéis", explica.
O projeto de lei distrital também gera controvérsias em relação à competência para legislar sobre o tema. A Constituição define que apenas a União pode estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional.
Além disso, de acordo com o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), é uma comissão técnica que define quais materiais didáticos e paradidáticos serão disponibilizados às escolas que aderirem ao Programa. A aquisição desses materiais deve observar uma série de critérios, sendo o primeiro deles "o respeito à legislação, às diretrizes e às normas gerais da educação".
"Ainda que o princípio da laicidade do Estado não impeça a inclusão da Bíblia dentre os materiais paradidáticos a serem utilizados pelas escolas, sua inclusão no PNLD deverá observar os critérios previstos e seguir os trâmites estabelecidos pela legislação, sendo certo que a inclusão de uma obra que é o símbolo sagrado do cristianismo, sem equivalência para as demais correntes religiosas, por si, afronta os princípios constitucionais e legais vigentes", conclui Elisangela Mundim.
A diretora do Sinpro-DF destaca ainda que o papel de compartilhar valores e instrução religiosa com os filhos é da família, e não da escola.
"Na medida que você coloca o ensino de um livro que se refere ao cristianismo, você está impedindo que essas pessoas que professam outra fé ou que não professam fé nenhuma possam se sentir à vontade no ambiente educacional. Se a gente continuar nesse ritmo, estamos cada vez mais perto do Estado fundamentalista", adverte.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino