Quase lá: A diversidade de trajetórias e pesquisas dos(as) pós-doutorandos(as) negros(as) da USP

Edital da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP concedeu bolsas de pós-doutorado a pesquisadores(as) negros(as) em diversas áreas de pesquisa; atuações vêm colaborando para uma ciência mais justa e robusta

 Publicado: 07/12/2023

Texto: Silvana Salles e Camilly Rosaboni*
Arte: Carolina Borin**

Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP lançou um edital de bolsas de pós-doutorado voltado especificamente para pessoas negras- Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Cecília Bastos/USP Imagens, Freepik e prostooleh/Freepik

Os dados do último Anuário Estatístico da USP revelam que, em um universo de mais de 5 mil professores, somente 123 se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas. Muito tem se falado sobre os problemas que essa falta de diversidade traz à Universidade: currículos eurocêntricos, referências com as quais os estudantes não conseguem se identificar, casos de racismo, potenciais perguntas de pesquisa que nunca chegam aos laboratórios porque estão distantes das experiências de quem está do lado de dentro. Além da reprodução de uma enorme injustiça histórica contra mais da metade da população brasileira. 

Diante dessas questões, neste ano a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP lançou um edital de bolsas de pós-doutorado voltado especificamente para pessoas negras. O objetivo deste edital foi apoiar doutores negros em suas carreiras acadêmicas, para que possam disputar de forma mais competitiva as vagas de docentes em concursos da USP e de outras universidades públicas. “O Programa foi idealizado como um espaço para melhorar o currículo, construir novas pontes e redes de pesquisa, possibilitar um melhor enquadramento na carreira. Bons programas de pós-doutoramento fazem isto”, explicou o professor Rogério Monteiro, que lidera a diretoria de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da PRIP. 

Foram selecionados 50 pesquisadores de todas as grandes áreas do conhecimento. Ao longo dos próximos meses, o Jornal da USP vai apresentar os doutores negros que atualmente desenvolvem suas pesquisas na USP. Nesta matéria, começamos com cinco: a advogada Marli Aparecida Sampaio, o especialista em radioproteção Max da Silva Ferreira, o físico Bruno Leonardo do Nascimento-Dias, o biólogo Adriano Silva dos Santos e a farmacêutica Michelle Barão de Aguiar.

Áreas de pesquisa dos doutores selecionados. Apesar de maioria nas ciências da saúde, pesquisadores negros estão distribuídos em todas as áreas do conhecimento - Gráfico: Elaborada por Silvana Salles

Marli Aparecida Sampaio

Marli Aparecida Sampaio é advogada e doutora em Ciências pelo programa de pós-graduação em Saúde e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Faz o pós-doutorado na Faculdade de Direito (FD) da USP, pesquisando casos em que planos de saúde negaram pedidos de tratamento a seus pacientes.

Nascida e criada em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, ela trabalhou por décadas como técnica de radiologia. O ofício permitiu a ela ajudar a família, pagar os estudos dos irmãos e se sustentar durante os cinco anos de graduação em direito na USP. Já formada, ela passou a advogar e a lecionar em cursos de especialização na área do direito. Mas foi só depois de se aposentar que encontrou tempo para defender o mestrado e voltar à USP para o doutorado e o pós-doutorado.

Marli se especializou em direitos do consumidor e chegou a ser diretora executiva da Fundação Procon de São Paulo durante um curto período. Hoje, preside uma associação chamada SOS Consumidor e mantém seu próprio escritório de advocacia. Alguns de seus clientes são pessoas que procuraram ajuda para ir à Justiça exigir que o plano de saúde pague pelo seu tratamento médico. Segundo a advogada e pesquisadora, a tendência do Judiciário em casos desse tipo é decidir a favor do paciente. 

Mesmo que o Judiciário invalide as negativas dos planos de saúde na grande maioria dos casos – 93% deles, segundo levantamento de Marli com dados do Tribunal de Justiça de São Paulo – o problema é que as operadoras não mudam sua forma de agir. Para a pesquisadora, isso mostra que a origem do problema está na regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que supervisiona os planos de saúde. Um dos resultados da pesquisa de Marli será uma sugestão de mediação para a ANS. 

Marli Aparecida Sampaio  - Foto: Arquivo Pessoal

Marli Aparecida Sampaio - Foto: Arquivo Pessoal

 

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Max da Silva Ferreira

Max da Silva Ferreira é pesquisador de pós-doutorado no Laboratório de Dosimetria da Radiação da USP, que fica no Instituto de Física (IF). Cria de Duque de Caxias (RJ), formou-se tecnólogo em radiologia em 2012. Teve uma curta experiência trabalhando com radiologia médica de 2012 a 2013 e logo descobriu seu caminho na pesquisa. Isso aconteceu em 2014, quando fez um curso de pós-graduação lato sensu no Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD/CNEN), que fica no Rio de Janeiro e é ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.

Mestre e doutor em Radioproteção e Dosimetria pelo IRD/CNEN, Max estuda formas de melhorar a monitoração de proteção dos trabalhadores que estão sujeitos ao contato diário com radiação ionizante, como os raios X e gama. Esse tipo de radiação tem energia suficiente para remover elétrons dos átomos, gerando íons. Em certas doses e sob certo tempo de exposição, pode causar queimaduras e lesões graves, além de aumentar o risco de câncer a longo prazo. Foi o que aconteceu em Hiroshima e Nagasaki com os sobreviventes das bombas atômicas e também nos acidentes de Chernobyl e com o césio-137 em Goiânia. 

Para monitorar os níveis de radiação a que são expostos, os trabalhadores dos setores de radiologia dos hospitais, de alguns setores da indústria e de usinas nucleares utilizam um pequeno dispositivo chamado dosímetro. O dosímetro é um monitor individual, que se parece com um pequeno crachá. Dentro dele há um material que funciona como detector de radiação ionizante. 

Max da Silva Ferreira - Foto: Arquivo Pessoal

Max da Silva Ferreira - Foto: Arquivo Pessoal

Periodicamente, os dosímetros dos trabalhadores são recolhidos e levados para um laboratório onde é feita a medição dos níveis de radiação a que eles foram expostos. No Laboratório de Dosimetria da Radiação, Max está trabalhando em melhorias no sistema de medição dos monitores individuais. Sua pesquisa de pós-doutorado trará benefícios diretos para a USP.

 

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Bruno Leonardo do Nascimento-Dias

Nascido e criado no Rio de Janeiro, Bruno Leonardo do Nascimento-Dias soube desde criança que queria ser cientista. Foi quando teve contato com a física na adolescência que ele teve certeza do caminho a seguir. Ainda na graduação, Bruno teve a oportunidade de estudar durante um período na Austrália e lá conheceu o trabalho de alguns pesquisadores importantes do campo da astrobiologia. Voltou decidido a fazer o mestrado no tema.

Doutor em Física pela Universidade Federal de Juiz de Fora, o pesquisador desenvolve sua atual pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Astrobiologia do Instituto de Química (IQ) da USP. Ele explica que a astrobiologia se propõe a investigar as condições para a existência de vida extraterrestre comparando o que sabemos sobre a Terra com as condições físicas, químicas e geológicas de outros planetas. 

No laboratório interdisciplinar do IQ, Bruno está estudando uma amostra do meteorito Santa Filomena, que caiu no sertão de Pernambuco em agosto de 2020. O projeto de pesquisa tem três objetivos. O primeiro é preencher algumas lacunas que ainda existem no conhecimento sobre a composição química do meteorito. O segundo é um trabalho de divulgação científica – atividade que Bruno já desenvolve em um canal do YouTube chamado Nupesc

Por fim, Bruno planeja terminar o pós-doutorado com condições de propor um projeto de lei para caracterizar os meteoritos que caem no Brasil como patrimônio geológico, regulamentando o acesso a eles. Hoje não há nenhuma legislação no País que trate dos meteoritos como patrimônio. Isso acaba prejudicando a ciência brasileira, pois os objetos acabam sendo adquiridos por cientistas estrangeiros – em geral, norte-americanos e europeus – e dificilmente os pesquisadores brasileiros têm acesso a eles. 

Bruno Leonardo do Nascimento Dias - Foto: Arquivo Pessoal

Bruno Leonardo do Nascimento Dias - Foto: Arquivo Pessoal

 

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Adriano Silva dos Santos

Adriano Silva dos Santos é biólogo graduado pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT). Começou a estudar genética ainda na iniciação científica e defendeu a tese de doutorado na área em 2022, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Hoje, faz o pós-doutorado no mesmo departamento em que cursou o mestrado e o doutorado, investigando as implicações da epigenética no comportamento e na estrutura do cérebro de uma espécie de mosca drosófila.

O pesquisador conta que conheceu o Departamento de Genética da FMRP em um curso de verão e se apaixonou imediatamente. No ano seguinte, Adriano fez as malas, mudou-se para Ribeirão Preto e começou a pós-graduação. Desde então, ele trabalha com as drosófilas como modelo biológico para entender alguns processos fundamentais que ocorrem em todos os organismos animais. Foi no doutorado que Adriano começou a olhar para a epigenética – um conjunto de alterações químicas do DNA que não modificam a sequência genética.

Na pesquisa de pós-doutorado, o desafio é saber se essas modificações químicas mudam de acordo com a alimentação das drosófilas, e se elas têm impactos para além do nível molecular, como um comportamento que tende ao isolamento. Segundo Adriano, o estudo pode ajudar a entender melhor a relação de doenças como ansiedade e depressão com o isolamento social – problemas que muitas pessoas viveram durante a pandemia de covid-19. 

Adriano Silva dos Santos - Foto: Arquivo Pessoal

Adriano Silva dos Santos - Foto: Arquivo Pessoal

O próprio pesquisador admite que teve dificuldade para enfrentar o isolamento social a muitos quilômetros de distância de sua família, enquanto desenvolvia sua pesquisa de doutorado. Para ele, os laços de amizade com seus colegas de laboratório e com a comunidade de sua igreja foram apoios fundamentais durante a pandemia.

 

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Michelle Barão de Aguiar

Michelle é formada em Farmácia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 2003. Na época, desenvolveu iniciação científica, com a intenção de seguir na área de Fármaco e Medicamentos. Tanto em seu mestrado, realizado na UFRJ, quanto no doutorado, feito na USP, discutiu sobre comprimidos bucais e géis mucoadesivos de Nistatina para o tratamento de Candidíase Oral. Com a bolsa de pós-doutorado da USP, ela pretende pesquisar sobre Saúde Cutânea de Indivíduos Negros: A Pele Negra Precisa de Fotoproteção?.

Nascida e criada na cidade do Rio de Janeiro, a carioca da gema Michelle se mudou para São Paulo, há cerca de 15 anos, quando seu marido recebeu uma oportunidade de trabalho no estado. Nesse momento, tinha ido buscar a professora Cristina Helena dos Reis Serra para iniciar seu doutorado, quando a encontrou lendo sua dissertação. “Foi muito interessante, porque ela estava querendo trabalhar com a Nistatina, que era o fármaco que eu tinha usado no mestrado. Então, realmente era pra ser. Deu um match!”, brinca Michelle.

Michelle Barão de Aguiar
- Foto: Arquivo Pessoal

Michelle Barão de Aguiar - Foto: Arquivo Pessoal

Apesar de ter feito pesquisa em diferentes universidades, Michelle levou uma característica em comum a elas: o uso das bolsas de estudo. Ela foi bolsista na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, CAPES no mestrado, bolsista CNPq no doutorado, e agora bolsista no pós-doutorado.

Ouça o relato de Michelle:

 

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Em meio às exigências acadêmicas, Michelle ainda precisou cuidar das demandas familiares. Ela iniciou seu doutorado grávida de oito meses e distante do suporte de seus familiares do Rio de Janeiro. “Eu precisava trocar com o meu marido para nós deixarmos o bebê na escola. Era uma dinâmica difícil e, por isso, a bolsa é importante. Ela nos ajuda a ter uma estrutura familiar mínima possível”, conta Michelle, ressaltando a flexibilidade de horários que a prática de pesquisa permite ter.

Após terminar seu doutorado, Michelle teve outra filha e, após seis anos longe das pesquisas acadêmicas, comenta sobre a dificuldade das mulheres atrelarem os dois momentos de dedicação. “Nós temos menos mulheres em cargos mais altos dentro da universidade. Isso está atrelado com o trabalho reprodutivo que a mulher desempenha”, lamenta a pesquisadora.

O tema de pós-doutorado escolhido por Michelle advém de uma análise pessoal de poucos estudos na área de fotoproteção para peles negras. A pesquisadora ressalta a importância dessa discussão uma vez que o Brasil é um país com muita incidência solar, cuja população é majoritariamente negra. “O Sol tem um impacto grande na saúde da população, e nós não temos dados robustos para dizer quais os malefícios que a radiação provoca nesse grupo que é a maioria da população brasileira”, explica Michelle.

A pesquisadora acredita que seu estudo possa respaldar políticas públicas de acesso ao protetor solar. “Hoje em dia, ele ainda é um produto muito caro para a maioria da população, então poderíamos demandar que protetores solares também fossem distribuídos em UBSs ou pontos de saúde. Então não é só uma questão estética”, afirma Michelle.

Como pesquisadora, mulher negra, mãe de duas crianças, sendo que uma delas foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista, Michelle destaca a importância de se ter diversidade na academia. “As pessoas que fazem ciência são pessoas. Quem faz pesquisa traz sua história de vida. Então nós não termos muitos resultados sobre a pele negra traz a ideia de que quem está pesquisando não acha isso importante. A PRIP vem para trazer a diversidade que nós encontramos na sociedade”, afirma ela.

*Estagiária sob supervisão de Tabita Said 

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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