por Mariana Kauchakje
Se em “A dominação masculina”, Bourdieu aponta para a divisão entre os sexos (sua extensa classificação e separação por diferenças biológicas) como parte de um processo de dominação, utilizado para construção de diferenças da ordem social que criam justificativas “naturais” para construções políticas e culturais que fazem com que “o uso desse corpo (da mulher) continue subordinado ao ponto de vista masculino” poderíamos dizer o mesmo sobre os processos de desenvolvimento tecnológico?
A relação entre essas questões já era observada até mesmo em Beauvoir que nos dizia que a situação de opressão da mulher não se dá apenas por diferenças biológicas, mas se mistura às condições sociais e técnicas de uma sociedade. Mais do que isso, Beauvoir assim como Bourdieu demonstra como essa relação entre “natural” e social se inscreve em nossas relações afinal,
(…) a mulher não poderia ser considerada apenas um organismo sexuado: entre os dados biológicos só têm importância os que assumem, na ação, um valor concreto; a consciência que a mulher adquire de si mesma não é definida unicamente pela sexualidade. Ela reflete uma situação que depende da estrutura econômica da sociedade, estrutura que traduz o grau de evolução técnica a que chegou a humanidade. (BEAUVOIR, 1970 [I], p.73)
A filósofa também já conversava de maneira crítica com o conceito de amanualidade de Heidegger, demonstrando como os artefatos não se apresentam “à-mão” do mesmo modo para homens e mulheres.
Ao longo da obra “O Segundo Sexo” o conceito de técnica é utilizado para designar informações socialmente construídas e aprendidas, possuindo ligação à cultura e as necessidades produtivas de uma sociedade. A definição de técnica vai para além da noção de apreensão mecânica de uma sequência de instruções, que invariavelmente alcança o objetivo desejado, a técnica é, portanto, e sobretudo instrumento para domínio e criação do mundo. A técnica está impregnada de valores, valores esses que estabelecem claramente os limites de ação possível para uma mulher (KAUCHAKJE,2020, p.24).
Ao inserir as dinâmicas de poder nessa relação, as ideias de universalidade, que são constantemente embutidas na técnica e na tecnologia, caem por terra. Os corpos se transformam nos marcadores. Mas ao borrar a visão dicotômica, de oposição, entre natureza e cultura embarcamos em um novo território, afinal ao retirarmos da mesa o descrever do natural como algo dogmático e permanente tudo passa a ser fruto de construções e, portanto, passível de ser modificado.
Assim nos conectamos com as ideias de Danna Haraway (1991) que afirma que esse borrar do natural e social, do animal e máquina é na verdade “a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado” e que tem como dogma a universalidade da experiência do masculino, afinal, a linguagem da tecnologia e os estudos sobre o lugar do digital são marcados por esses ideais, ideais que se alinham também como uma lógica liberal.
Pekka Himanen em seu estudo “The Hacker Ethic and the Spirit of the Information Age”, sobre o campo do digital e em especial da internet, analisa esse momento como um novo paradigma para as lógicas de trabalho, as transferindo das dinâmicas analisadas por Weber, enraizadas no dever, para uma relação de paixão pelo que se faz, e a busca por reconhecimento individual para além dos ganhos financeiros. neste sentido, aquelas lógicas do trabalho estariam sendo transferidas da ética protestante weberiana para a ética hacker. Nessa linha Castells (2003), desenha a ética da internet, como sendo fortemente influenciada pela ética hacker, e “como um espaço marcado pelas relações meritocráticas, onde o prestígio é validado pelo reconhecimento dos pares” entendo a internet como influenciada por características ligadas à inovação, criatividade e eficiência (NATANSOHN e REIS , 2020 p.14)
Mas como afirmam Natansohn e Reis (2020) os pensadores Himanen e Castells parecem, não só, profundamente entusiasmados com a novo campo, a ponto de produzir relações reducionistas, mas se esquecem de analisar como a profunda falta de diversidade e as dinâmicas de poder estão inseridas nesses espaços, afinal, estes não são anacrônicos e ainda que estejam permeados por potenciais novas dinâmicas, construções e fronteiras, eram, e por muitas vezes ainda são, construídos de maneira hegemônica por um grupo específico de pessoas.
Sendo assim, torna-se importante o seguinte questionamento – Quais deslocamentos os estudos feministas são capazes de gerar para os estudos de ciência e tecnologia?
Acredito que essa questão aponta para alguns caminhos, um deles tem a ver com a própria característica relacional dos espaços digitais, seja essa relação entre humanos ou entre humano e tecnologia, a lógica feminista recoloca ou redefine possibilidades e realidades. Isso porque, o que tem se observado tanto no desenvolvimento teórico como nas construções e ações ativistas é que, na cena hackfeminista, valores tradicionais da cultura liberal colados no imaginário e na práxis da cultura hacker convencional perdem espaço (NATANSOHN e REIS, 2020 p.16). A liberdade de expressão, autonomia, meritocracia e abertura passam a ser vistos por uma nova perspectiva e a partir de outras realidades (HARAWAY, 2004).
As experiências de gênero, raça e classe passam a ser recortes visíveis e centrais que marcam essas perspectivas, os corpos e as realidades dessas construtoras e produtoras do meio digital não são apenas um codificador relacional sobre suas individualidades, mas marcam sempre suas construções relacionais. Afinal, a individuação se dá sempre em relação a algo e, quando esta não é pensada de maneira binária (o padrão x o “outro”), as potencialidades para a disrupção das lógicas de poder são tremendas.
Navegar no espaço digital requer que estes corpos saibam navegar estrategicamente os processos de visibilidade e invisibilidade. Sua presença e o ocupar desses espaços é transformador, pois são corpos historicamente invisibilizados como construtores e produtores da realidade, mas, ao mesmo tempo, são extremamente visíveis para ações de violência e vigilância.
Desta maneira, a lógica hacker ativista do anonimato ganha outros desdobramentos e complexidades quando inserida no recorte de gênero. A lógica de experiência masculina como universal cria indivíduos que “não se encaixam nas articulações semiótico-materiais contingentes” (HARAWAY, 2004, p.57) e torna esse navegar um campo de tensionamento e conflito permanente.
Proponho então, que a etica feminista e o espírito hacker encontram-se, na lógica tradicional, em lugares distantes, mas quando o espírito hacker torna-se hackerfeminista, aí sim podemos alcançar o entusiasmo de Himanen e anunciar uma contraposição à perspectiva weberiana – ética protestante x ética hackerfeminista, ainda que a realidade esteja permeada por essas duas éticas simultaneamente
Afinal, o espírito hackerfeminista parece menos interessado e investido na autonomia liberal meritocrática e mais comprometida com uma lógica relacional, de cuidado e interdependência.
Isso porque, o lugar onde a tecnologia digital opera não é o individual, tudo depende de uma rede, de uma comunidade e os dados são gerados e interpretados com base em coletivos. O indivíduo só existe como parte do todo, esse já é o lugar em que a tecnologia se inscreve, o que existe é apenas um simulacro das opções individuais que são inseridas nos termos de serviços de plataformas.
Por isso, esse deslocamento proposto pela ética hackrfeminista se encontra, ao mesmo tempo, colado à realidade material do meio em que opera e deslocado o suficiente das práticas que performam sua característica autônoma, sendo assim, capaz de ferir a lógica capitalista, a ética protestante e o patriarcado. Todos de uma só vez.
Referências:
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Volume 1. Tradução Sérgio
Milliet. 4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. 3 a ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 2 vol.
BOURDIEU,Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro-RJ, Editora Zahar, 2003.
HARAWAY,Donna.Testigo_Modesto@Segundo_Milenio.HombreHembr a(c)_Conoce_Oncoratón®. Feminismo y tecnociencia. Barcelona, Editorial UOC, 2004 [1997]
HARAWAY,Donna “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century” in Cyborgs, and Women. The Reinvention of Nature. Routledge. 1991
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução: Fausto Castilho. Campinas, SP:
Editora da Unicamp; Petropolis, RJ: Editora Vozes, 2012
HIMANEN, Pekka. The hacker Ethic and the Spirit of the Information Age.New York, Random House, 2001.
KAUCHAKJE, Mariana. Amanualidade em Simone de Beauvoir: Contribuições para fundamentos teóricos em design de interação. Relatório da pesquisa de iniciação científica (PIBIC). Orientação a Rodrigo Freese Gonzatto. PUCPR, 2020.
REIS, Josemira; NATANSOHN, Graciela.Digitalizando o cuidado: mulheres e novas codificações para a ética hacker. Cadernos pagu (59), 2020.
fonte: https://www.pimentalab.net/tecnologia-feminismo-e-genero-a-etica-feminista-e-o-espirito-hacker/