Gustavo Massola e Marcelo Nery comentam dados do relatório “Atlas da Violência”, os quais apontam queda nos índices de homicídios no País desde 2016
O relatório Atlas da Violência, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), é publicado anualmente e atualiza os dados de violência no Brasil. A pesquisa de 2023 indicou a diminuição na taxa de homicídios no País desde 2016, no entanto, alguns fatores demonstram que existem números ocultos.
Nesse sentido, Gustavo Massola, professor do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP), afirma: “Esses dados têm que ser gerados por alguém, seja pela polícia ou por algum outro órgão, na hora de registrar um homicídio. É necessário haver um campo para identificar o perfil identitário das vítimas, é difícil estabelecer esse tipo de informação, porque não é gerado no momento do registro”.
Ele ainda cita os casos dos indivíduos que fazem parte da comunidade LGBTQIAP+ para evidenciar a dificuldade de registrar esses casos e realça que há grupos que buscam fazer tal apontamento, mas que há dificuldades, uma vez que fazem indiretamente, por meio de reportagens e entrevistas.
Violência no dia a dia
“Em primeiro lugar, a percepção em si é relevante. Estando ou não associada a mudanças nos indicadores de homicídios, se as pessoas percebem um aumento na violência cotidiana, elas vão começar a agir de maneira diferente, o que pode produzir mudanças na própria sociedade”, discorre Massola sobre um sentimento de acréscimo da hostilidade cotidiana.
Essa agressão no dia a dia pode ser exemplificada por discussões entre vizinhos e familiares ou brigas na rua e no trânsito — agressões físicas e morais. Assim, o professor afirma que a percepção deve ser multifatorial, visto que é causada por vários fatores como perdas pessoais, notícias na televisão ou vulnerabilidade social e, dessa forma, existem diferentes abordagens.
No campo das ciências sociais, a percepção social é responsável por criar as próprias relações sociais — construtivismo social. Por outro lado, existem autores que defendem que essa percepção é precisa, isto é, tende a se relacionar com a realidade objetiva: “No Brasil tem o trabalho de uma autora que revela que a percepção social pode ser interpretada e, a partir disso, coisas importantes sobre a realidade social podem se revelar”, desenvolve.
Para Massola, caso haja esse aumento na percepção da violência cotidiana, isso se deve a mudanças amplas na sociedade brasileira e destaca dois fatores diferentes. O primeiro seria a pandemia de covid-19, visto que, por conta da perda de muitos indivíduos, as pessoas saíram desse período com sequelas e, com isso, profissionais da psicologia relataram que houve um aumento na procura por atendimento psicológico e no diagnóstico de problemas de saúde mental.
Outrossim, o professor ressalta o desenvolvimento e a implementação de medidas neoliberais na vida econômica e social, que tendem a diminuir a mediação coletiva nos conflitos socioeconômicos. “Isso tem como consequência a ideia de que esses conflitos não devem ser abordados por meios políticos, que são meios fundamentalmente coletivos, por exemplo, nas mudanças que aconteceram nas leis trabalhistas e nas leis previdenciárias”; ele complementa que essa realidade produz insegurança e informalidade no trabalho e, por consequência, os indivíduos possuem menos direitos e garantias.
Para além disso, ele acrescenta que esse cenário acarretou o aumento do número de pessoas encarceradas no Brasil, assim como aconteceu nos Estados Unidos e na Inglaterra. “Essas concepções de sociedade, de como lidar com os conflitos, tendem a fazer com que o Estado, em vez de adotar medidas de proteção social, lide com os conflitos sociais por meio da repressão direta”, discorre.
Queda nos índices
O pesquisador Marcelo Nery, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, diz que concorda com as explicações sobre o decréscimo nos índices de homicídio, segundo o Atlas. Entretanto, ele ressalta que, no momento, essas considerações são apenas hipóteses, isto é, não se sustentam como fatos. “A gente ainda não tem os dados que corroborem essa hipótese por falta de acesso aos dados do último Censo. Como a gente não consegue confirmar isso, a gente está mais no mundo da especulação e da hipótese do que de explicação efetiva”, discorre.
O relatório aponta três motivos essenciais para esse cenário de queda: mudança no regime demográfico, redução do conflito entre facções criminosas e a criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Em relação ao primeiro, o especialista comenta: “Pressupondo que a população brasileira está envelhecendo, a gente poderia concluir que o nível de violência, principalmente a criminalidade violenta, tenderia a reduzir”; contudo, ele ainda contrapõe que, em uma perspectiva global, isso é inconsistente, haja vista a ausência de microdados divulgados pelo IBGE no Censo Demográfico 2022.
De acordo com Nery, a redução dos conflitos entre grupos criminosos, outro ponto indicado, sofre com a falta de acessibilidade aos dados da Segurança Pública, que permitiriam analisar com maior consistência a relação com a diminuição dos homicídios. Isso ocorre devido à escassez de transparência das Secretarias de Segurança estaduais e pela dificuldade em mensurar a atividade criminal.
Ademais, o último ponto levantado foi a importância do Susp, que implementou programas de segurança pública mais qualificados e efetivos na redução da violência, permitiu uma melhor troca de informações entre policiais e, consequentemente, maior controle das ações criminais. Ele exemplifica: “A gente pode pensar, por exemplo, na informatização, no uso de câmeras, de mapeamento do sistema de informação geográfica e melhor formação de policiais”.
Todavia, ele complementa que, em alguns contextos, além desses programas da segurança pública, deve ser notado o papel dos municípios na contribuição para esse decréscimo no crime. Além disso, houve um aumento no número de instituições e ONGs que trabalham efetivamente na melhoria dessa chaga social, especialmente nas regiões periféricas e mais vulneráveis.
Realidade e futuro
“A palavra violência significa violar a condição de dignidade humana de alguém, é tratar um sujeito humano como objeto.” Nesse sentido, Gustavo Massola afirma que a violência é muito ampla e, dessa forma, os indicadores de homicídio geram um panorama geral, mas são um pequeno aspecto dessa chaga.
Segundo o docente, a opressão se expressa em diferentes âmbitos, desde a educação ao direito ao lazer, ou seja, toda vez que os direitos garantidos pela Constituição de 1988 são negados para a população. Assim, eles revelam uma sociedade que estabelece uma relação violenta com os cidadãos. Sob o ponto de vista do professor, não existe uma perspectiva de melhoria no Brasil para esses direitos fundamentais: “Eu diria que as perspectivas não são muito animadoras no sentido amplo, mas que, no sentido restrito da taxa de homicídios, a tendência é de uma ligeira melhoria no futuro próximo”.
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