Quatro egressas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP relatam os desafios de seguir a carreira musical; pesquisadoras buscam referências femininas entre compositoras, arranjadoras e intérpretes
Jornal da USP - Publicado: 15/08/2024
Texto: Larissa Leal*
Arte: Beatriz Haddad**
No violão, Carolina Andrade Oliveira, regente coral e arranjadora, em duo com a cantora Giulia Faria - Foto: Amanda Ferreira/ LAC ECA USP
“Não, no período renascentista não tem mulher compositora”, foi o que Maria Rúbia Andreta, graduada em Música com habilitação em Regência e Voz pela Universidade de Campinas (Unicamp) e mestra em Música pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, ouviu de um professor ao questioná-lo sobre mulheres compositoras no Renascentismo.
A curiosidade da musicista sobre o assunto surgiu após assistir a uma defesa de mestrado sobre a cantora e compositora barroca Barbara Strozzi. Maria, envolvida com música desde os seis anos de idade, se surpreendeu por não conhecer a história da compositora e, apesar da resposta de seu professor, não desistiu de saber mais sobre a existência de outras mulheres da área naquele período.
Ela começou a pesquisar e descobriu Maddalena Casulana, a primeira mulher a ter suas obras musicais publicadas ainda em vida, justamente no período Renascentista, no século 16. Essa história acabou se tornando o tema de sua iniciação científica. “Existe esse apagamento, que impacta na percepção das mulheres sobre as próprias possibilidades”, conta a pesquisadora, reforçando a importância de resgatar a memória dessas artistas pioneiras.
Em seu mestrado, a musicista não se afastou do recorte de gênero, mas voltou seus estudos para os coros. Foi então que surgiu a pesquisa Onde estão as mulheres no canto coral?, que buscou investigar a falta de compositoras e arranjadoras no repertório apresentado por coros profissionais.
Maria Rúbia Andreta - Foto: Arquivo pessoal
Compositoras, arranjadoras e intérpretes
Em geral, corais apresentam um equilíbrio de gênero, principalmente, pela necessidade de naipes vocais variados, dos mais agudos aos mais graves. Ao se tratar de repertório, entretanto, as compositoras e arranjadoras não estão presentes de maneira tão igualitária.
Durante seu mestrado, Maria Rúbia analisou os repertórios do Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), Coral Paulistano, Coro Lírico Municipal de São Paulo, Coral Lírico de Minas Gerais e do Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Segundo a pesquisa que realizou, apenas 1,7% do repertório apresentado por esses coros, entre 2015 e 2021, foi composto ou arranjado por mulheres. O caso do Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro chama mais atenção: nenhuma das obras apresentadas pelo coro no período eram de autoria feminina.
“As mulheres atuam no canto coral, mas em quais espaços? Quais são os espaços permitidos para elas?”
Ela relembra que, enquanto estava desenvolvendo o trabalho, houve apresentações especiais durante o mês de março, o mês da mulher, que incluíam peças escritas por compositoras. No entanto, a iniciativa não se estendeu para o repertório dos grupos corais em outras épocas do ano.
Para a pesquisadora, o aumento da presença das mulheres em cargos decisórios nesses locais pode ser um passo na direção da inclusão de obras de autoria feminina nas apresentações dos corais. Ela cita o exemplo de Maíra Ferreira, atual regente do Coral Paulistano, que se preocupa em sempre incluir composições de mulheres como parte do repertório. “Ocupar esses espaços acaba abrindo espaço para outras mulheres chegarem”, explica Maria.
O exemplo de Carolina Andrade Oliveira, que atua como regente coral e como arranjadora, é importante para tornar o cenário da música mais inclusivo e possível para mulheres.
Carolina faz pós-doutorado em Música na ECA e, em sua pesquisa, se dedica ao estudo de arranjos vocais. A pós-doutoranda defende que os arranjos devem estar mais presentes, não só na academia, mas também nas escolas e em todos os ambientes musicais. “O arranjo é uma criação, um modo de expressão tão válido quanto qualquer outro”, diz a pesquisadora.
Carolina relata que, apesar de existirem excelentes arranjadoras, é comum encontrar trabalhos que referenciam apenas os arranjadores homens. “São de fato menos mulheres que atuam nessa área ou elas só não são vistas performadas ou citadas?”, questiona.
Carolina Andrade Oliveira - Foto: Arquivo pessoal
A musicista, que também é licenciada, mestra e doutora pela ECA, faz parte do duo Volver a Latinoamérica, juntamente com a cantora Giulia Faria. Inspirado por duas cantoras latinas Mercedes Sosa e Violeta Parra, o duo também é fortemente influenciado pela poeta e musicista María Elena Walsh. A violonista conta que a proposta da dupla é revisitar essas mulheres relevantes e especiais para a história da música latino-americana.
Mulheres à frente da orquestra
Laura Gentile - Foto: Arquivo pessoal
Para além da atuação nos corais, a presença das mulheres em outras áreas da música também é repleta de desafios. Assim como na história das mulheres compositoras, a entrada delas na música como regentes orquestrais não é um caminho fácil a ser seguido.
Laura Gentile, graduada em música pela ECA e com mestrado recém defendido na Mannes School of Music, nos Estados Unidos, teve experiências como regente coral e hoje atua como regente orquestral. Ela conta que as dificuldades já existiam no início de sua trajetória acadêmica. “Para mim, durante a graduação, fez muita falta ter exemplos de mulheres regentes orquestrais e, inclusive, é até hoje uma questão que eu tenho de autoestima, porque quais são os exemplos que eu tenho para trazer para minha vida, para eu me identificar como regente orquestral?”, diz Laura.
Diante da falta de exemplos e da necessidade de resgatar essas referências, a regente também se interessou por estudar a presença feminina na música. Ela teve como personagem central do seu Trabalho de Conclusão de Curso na ECA a musicista Eunice Katunda, que foi pianista, compositora, regente e arranjadora.
Na ECA, ela percebeu que recebia menos tempo de pódio — tempo de regência da orquestra — e mais interrupções quando tinha a oportunidade de reger. Após se formar, o cenário encontrado por Laura na profissão também não foi muito diferente do que aquele que musicistas anteriores enfrentaram. Durante seu tempo de estudo na Mannes, ela foi a única mulher brasileira no departamento de regência da instituição. Mesmo com os obstáculos, concluiu seu mestrado e regeu os Choros nº 6, de Villa Lobos, e a Valsa Triste, de Sibelius, em seu recital de finalização.
Giovanna Elias - Foto: Arquivo pessoal
Giovanna Elias, formada em Música com habilitação em Regência pela ECA, também tem relatos parecidos com os das colegas. Ainda durante a graduação, Giovanna passou por situações nas quais foi interrompida por homens que sequer conheciam o repertório que estava sendo apresentado pelo coral. Ela lembra de um ocorrido em específico, no qual foi interrompida por um colega de classe enquanto regia um grupo de cantores que ela mesma idealizou e organizou. “Interrompem no meio do meu ensaio, algo que eu, que assisto muitos ensaios de orquestra e maestros, nunca havia visto acontecer com um maestro homem, seja ele jovem ou velho, experiente ou não. Ninguém interrompe.”
Hoje, Giovanna é pianista e regente assistente na Orquestra de Câmara da USP (Ocam), e diretora artística da SP Chamber Orchestra (Orquestra de Câmara de São Paulo). Ela conta que a orquestra é muito colorida e diversificada. “A gente quer trazer uma visão humana, construtiva, de respeito a todos os povos e a todos os gêneros.”
Além disso, o grupo busca levar a música clássica para além dos lugares convencionais, lugares onde o público possa se sentir mais confortável. “Às vezes [as pessoas] acham um ambiente de um teatro, uma sala de concerto opressiva”, ela explica. Seguindo essa mesma proposta de democratização, a orquestra também realiza concertos a preços populares.
Por mais mulheres na música
A luta pela representatividade feminina vem mostrando resultado nos últimos anos, de acordo com o Relatório sobre a Participação Feminina na Indústria Musical. De acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), o número de mulheres contempladas com valores de direitos autorais subiu de 25 mil, em 2022, para 29 mil, em 2023. Apesar de tímido, este aumento pode ser significativo para impulsionar a conscientização do mercado sobre a importância de ampliar a atuação e contribuição das mulheres.
Outro dado que apresentou avanço foi a quantidade de músicas compostas por mulheres entre as mais tocadas do País: 2023 teve cinco entre as 20 músicas mais tocadas em shows no ano. Já em 2022, o número era de apenas 3. Apesar disso, entre os 100 autores com maior rendimento de direitos autorais, o número de mulheres chegou a apenas seis, em 2023.
O estudo foi baseado no banco de dados da gestão coletiva da música no Brasil, que é formado pela Ecad e outras sete associações.
“É por cota enquanto precisar ser”
Apesar das adversidades e hostilidades, o crescimento da atuação de mulheres na música também é perceptível aos olhos das musicistas entrevistadas, que julgam importante essa presença para que mais garotas se sintam impulsionadas a trilhar esse caminho em seu futuro. “É uma profissão, especialmente para mulheres, que você precisa muito de paciência. Então, insista muito”, enfatiza Laura.
Maria Rúbia também chama a atenção para a necessidade de políticas públicas de incentivo à entrada de mulheres nas diversas áreas da profissão, como a existência de cursos específicos voltados para mulheres. A pesquisadora explica que essas iniciativas têm um papel importante em “fazer a pessoa enxergar que aquele espaço é possível para ela”.
*Com texto de Larissa Leal, editado por José Adryan – estagiário sob supervisão de Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado