Escrita por Jhonny Salaberg e dirigida por Naruna Costa, “Parto Pavilhão” está em cartaz no Teatro da USP até 17 de março
Em abril de 2009, nove detentas fugiram do Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Feminino do bairro do Butantã, na zona oeste de São Paulo. Das nove mulheres, seis carregavam consigo bebês de até seis meses de idade, uma vez que estavam em um anexo do CPP, o Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa, específico para a fase de amamentação, que alocava cerca de 60 mulheres, em sua maioria negras.
Esse acontecimento foi escolhido pelo dramaturgo, ator e escritor Jhonny Salaberg para finalizar sua Trilogia da Fuga, pesquisa do coletivo Carcaça de Poéticas Negras sobre “o corpo negro em fuga e suas estratégias de sobrevivência”. As duas primeiras obras da trilogia, Mato Cheio e Buraquinhos ou O Vento É Inimigo do Picumã, já saíram das páginas para os palcos em anos anteriores. Agora, em 2024, Salaberg estreia no Teatro da USP (Tusp) Parto Pavilhão, com direção de Naruna Costa e atuação solo de Aysha Nascimento. A peça está em cartaz no Tusp até 17 de março.
Pensar o amanhã: o realismo fantástico no teatro negro
Na vida real, oito das nove mulheres fugitivas foram capturadas em pouco tempo. Mais de uma década depois, o encarceramento em massa, o racismo e a maternidade na prisão seguem sendo temas e, recentemente, houve novas denúncias de más condições no CPP Feminino do Butantã. A proposta de Parto Pavilhão, porém, é ir de encontro a essa história.
O espetáculo se propõe a ser um realismo fantástico, isto é, vai além do acontecimento factual e adiciona elementos novos, que vislumbram diferentes desfechos. Na trama, Rose da Silva (Aysha Nascimento), uma das mulheres presas no CPP, é ex-técnica de enfermagem e ajuda as demais nos partos e nos cuidados com seus filhos, o que a faz ser designada como “a parteira”. Por ter bom comportamento, Rose adquire o respeito e a confiança dos dirigentes do presídio. Isso permite que ela auxilie, secretamente, a fuga de cerca de 50 de suas colegas, durante um jogo decisivo da Copa do Mundo de 1994, na qual o Brasil se sagrou campeão — essa já é uma interferência do autor: o período.
A diretora Naruna Costa, formada em Artes Dramáticas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, afirma que o principal intuito da obra de Salaberg e do teatro negro atual é abrir espaço para a utopia: “Ele está escrevendo sobre possibilidades de futuros para esses corpos pretos. Tem um ‘e se?’ no final da história triste que faz com que se discuta se é um realismo fantástico ou uma realidade possível”.
Naruna explica que esse traço utópico é o que caracteriza a “nova fase” do teatro negro, em que denunciar o racismo estrutural e suas nuances deixa de ser o objetivo principal para dar lugar à busca pela “concretização da utopia”. “É o momento do teatro negro: pensar o amanhã. Nós já passamos pela fase de deixar óbvio o quanto este país precisa negociar a ideia de democracia racial. Essa realidade ainda é uma das realidades da população negra. Mas quais são as outras? Não queremos ser apenas estatística.”
A diretora cita Os Crespos, O Bonde e o Grupo Clariô, do qual é cofundadora, como coletivos com duas décadas de existência e que estão aderindo a esse movimento. “Trazemos a ideia de futuro para o teatro para que ele dê conta do que a vida não é capaz de dar”, diz.
A “leveza” de Ítalo Calvino em Parto Pavilhão
Jhonny Salaberg teve no conceito de “leveza”, do escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985), uma de suas inspirações. Calvino se vale daquilo que observa na evolução da ciência e da tecnologia em sua época para ter como lembrete a ideia de tratar assuntos densos de forma mais leve. É exatamente isso o que propõe a escrita de Salaberg e o teatro negro descrito por Naruna, ainda que em contextos diferentes.
A “leveza” também se vê presente na atuação de Aysha como Rose. Sua performance carismática, que reúne dança, canto, ironia e sentimento em um discurso forte, feito em formato de conversa com o público, faz com que a personagem cresça em cena — fator que também é realçado pelo violoncelo, tocado por Reblack, e pelas mudanças na iluminação da peça, desenhadas por Gabriele Souza e operadas por Beatriz Nauali.
Para Naruna, dirigir Parto Pavilhão foi um desafio também pelo fato de que, tanto para ela, na direção, como para Aysha, na atuação, o solo era uma novidade. “Achei muito delicado, mesmo sendo uma artista que eu admiro muito. Foi uma responsabilidade absurda e um grande desafio, especialmente para nós, que estamos acostumadas ao trabalho de grupo e em grupo”, conta.
Por essa razão, a construção da personagem Rose como indivíduo, que não existiu na vida real, foi um dos focos da diretora. Ela explica que conversou com mulheres que passaram pela situação de mães encarceradas – tema abordado pelo Jornal da USP em janeiro passado (leia aqui) – e que isso inspirou a caracterização da protagonista, evitando estereótipos. “Para além de uma mulher negra encarcerada, quem é ela? Quais são suas subjetividades, seus desejos, suas falhas? O encontro com essas ‘Roses’ foi também para entrar nas camadas de uma persona que tenha humanidade, liberdade e identidade.”
Reconhecimento
Naruna Costa também dirigiu Buraquinhos ou O Vento É Inimigo do Picumã (2018), em sua primeira parceria com Salaberg. À época, ele foi o primeiro negro a ser indicado a melhor dramaturgo pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), enquanto ela foi a primeira negra a receber a indicação — e o prêmio — de melhor direção teatral da APCA, além de ter sido premiada pela Aplauso Brasil.
A diferença entre as produções é que, enquanto em Buraquinhos o escritor não só atuava, mas participava ativamente do processo criativo, em Parto Pavilhão ele ficou apenas na produção. “O Jhonny não viu nada do espetáculo, não faz ideia do que fizemos com a peça em si. Quero saber o que ele vai achar”, diverte-se Naruna, destacando também o tempo de produção da obra: “Completamos, neste mês de estreia, nove meses de processo. Foi sem querer, mas é o período de um parto”.
A peça Parto Pavilhão está em cartaz até 17 de março, de quinta a sábado, às 21 horas, e domingo, às 20 horas (haverá sessões extras nos dias 2, 9 e 16 de março, sábados, às 18 horas), no Teatro da USP (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do Metrô). Os ingressos são gratuitos e podem ser adquiridos na bilheteria uma hora antes do espetáculo, que dura 60 minutos. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3123-5222.
fonte: https://jornal.usp.br/cultura/peca-propoe-possibilidades-de-futuro-para-corpos-negros-no-brasil/