Políticos que não querem que seus projetos tenham visibilidade na esfera pública sinalizam que são contra a liberdade de expressão, pois não querem ouvir ou participar do debate.
Por Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
Em qual país do mundo uma tramitação de projeto político é parado porque alcançou uma visibilidade inesperada? São muitos os países do mundo em que isso poderia acontecer atualmente, desde o Afeganistão do Taliban aos Estados Unidos de um hipotético Trump em segundo mandato. Mas, claro, aconteceu no Brasil. Yes, we have violence simbólica e literal para exportar e dar ideias criativas para o resto do mundo no retrocesso dos direitos da preservação do meio ambiente e das mulheres.
No final de maio e início de junho, Luana Piovani e Neymar Jr. literalmente pararam o Congresso após a atriz comentar em vídeo no Instagram a crítica da comunicadora socioambiental Laila Zaid sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03/2022, chamada “PEC da privatização das praias”. Neymar Jr., por sua vez, publicou vídeo também no Instagram apoiando passar a “boiada”. A emenda chamou muito a atenção pela crítica veiculada por Piovani, que usou como palavra mais forte para criticar Neymar “estrupício” e que “ele é um péssimo exemplo como cidadão. Ele é um péssimo exemplo como pai. E ele é um péssimo exemplo como homem, como marido, como companheiro”. Ao que o jogador replicou: “(…) agora tem que enfiar um sapato na tua boca porque só fala merda” e “tem mais de 50 anos quer vir lacrar na internet?”.
Grada Kilomba, no programa Roda Viva da TV Cultura em 15 maio, chama a atenção para a naturalização da violência, e diz que na sua visita ao Brasil a impressionou como a violência está impregnada inclusive na arquitetura, reproduzindo e repetindo um desenho escravocrata no elevador “de serviço”, nas entradas “da frente e de trás”. Hierarquiza os corpos que podem entrar e normaliza a violência ao dizer a uma pessoa “entre pela porta de trás”. Para a artista, seu trabalho é desnaturalizar a violência, que está inclusive impregnada na língua portuguesa, na hierarquização dos gêneros, por exemplo.
Johan Galtung, sociólogo norueguês, definiu três tipologias da violência. A direta, que é a violência interpessoal nas suas mais variadas formas; a estrutural, como a misoginia, racismo e a desigualdade social no Brasil, que persistem em estruturas sociais ao longo do tempo, e a violência cultural. A violência cultural carrega o termo “cultura” com o sentido de que está tão introjetada numa determinada sociedade que nem é percebida como inadequada ou errada, como é o caso da sociedade brasileira – e dos políticos brasileiros. Então, se os xingamentos misóginos e etaristas de Neymar continuam replicando violências que não são percebidas como tal, visto que o jogador quer processar Piovani (e não o contrário), o que dirá da bancada de senadores que achou melhor suspender a tramitação da emenda constitucional porque a pauta chegou à esfera pública.
Políticos que não querem que seus projetos tenham visibilidade na esfera pública sinalizam que são contra a liberdade de expressão, pois não querem ouvir ou participar do debate. Assumem suas representações públicas como postos de saqueadores autorizados pelos cidadãos e governo, reproduzem o autoritarismo colonial que forjou a arquitetura segregadora e violenta para a qual Grada chama a atenção. Isso é reportado como se fosse esperado, sem nenhum espanto.
A outra PEC (PL 1904) visa criminalizar meninas vítimas de estupro, este sim, ao que parece, um direito do homem, pelo que a mudança sugere – equiparar o aborto depois de 22 semanas a crime de homicídio, fazendo as mulheres (na maioria das vezes, crianças do sexo feminino) ficarem mais tempo na prisão do que seus próprios violadores. Seriam meninas violadas mais perigosas à sociedade do que seus estupradores? A naturalização da violência aqui é gritante, senão aviltante. Políticos defenderem e pautarem uma aberração como essa revela o grau de desprezo às mulheres que se equipara ao período colonial, quando a mulher branca foi colocada no posto de reprodutora, e esta seria sua função até os dias de hoje. Já a mulher negra era menos que mulher, não podia ocupar o lugar oficial da fêmea reprodutora do capital colonizador branco, e continua sendo a mais violentada até hoje nos seus direitos humanos. E sabemos bem quais mulheres morrem mais em abortos clandestinos, por não terem acesso a viagens para abortar em países onde o procedimento é legalizado.
O projeto, inicialmente aprovado com urgência para votação, mas agora deixado para o segundo semestre, tem novamente a estratégia do impedimento do debate público e da razoabilidade, já que por trás (pela entrada de serviço, usada para não serem vistos) há muito se mina as condições para o que aborto seja realizado até 22 semanas. Primeiro, tira-se as possibilidades de a lei ser cumprida, fecham-se os hospitais, ignoram-se as condições de vida das mulheres e crianças que precisam fazer uso da lei. Depois, muda-se a lei. “Os artistas são as antenas da raça”, dizia Marshall McLuhan, teórico da comunicação.
Pelo andar da naturalização da violência contra as mulheres, infelizmente esta atualidade não parece envelhecer, desde 1500, ao menos.