Em entrevista à Amazônia Real, a educadora falou sobre os desafios da educação para os indígenas, a luta para proteger as crianças pertencentes aos povos originários. Ela também destacou o alerta para o futuro dos Yanomami.
A entrevista é de Leanderson Lima, publicada por Amazônia Real, 12-01-2024.
A inclusão da educação indígena nas políticas públicas do país é um dos maiores desafios nas demandas dos povos originários. Apesar de iniciativas e projetos implementados no passado, muitas reivindicações ainda precisam ser atendidas. Nesta luta por um ensino escolar indígena está a professora Rita Potiguara, de 54 anos, cujo povo originário vive no sertão do Ceará. Rita nasceu na aldeia São José, em Cratéus. A cidade, como ela define, tem uma face multiétnica, povoada por ciganos, quilombolas e povos indígenas de diferentes etnias, como Guarani, Tabajara, Tupinambá, além dos próprios Potiguara.
Em final de 2023, Rita Potiguara participou do 10º Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, um evento promovido pelo Núcleo Ciência pela Infância, uma organização composta por várias instituições. Durante o evento, do qual a Amazônia Real também esteve presente, Rita falou sobre sua área de atuação, que é a educação escolar indígena. Ela também concedeu uma entrevista à agência durante o simpósio. Em janeiro de 2014, Rita voltou a conversar com a reportagem. As duas partes da entrevista estão reunidas nesta reportagem.
Sentada e com as mãos cruzadas sobre as pernas, a educadora Rita Potiguara participa do10º Simpósio
(Foto: Pedro França | Amazônia Real).
Na conversa, ela falou sobre como começou sua atuação na educação indígena, o pioneirismo em várias áreas e as dificuldades e desafios que enfrenta e da necessidade de continuar lutando para derrubar barreiras. Rita também destacou sobre a crise humanitária que impacta o povo Yanomami causada pela atividade de garimpo. “Eu acompanho a situação dos Yanomami há muito tempo. Desde que sou gestora das políticas de educação escolar indígena”, explicou.
Rita Potiguara se descreve como “mulher indígena, mãe, tia, tia-avó, professora, gestora de políticas públicas e pesquisadora”. Ela lembra que foi na educação que encontrou a vocação de sua vida. O caminho foi longo.
Do começo como monitora de creche até chegar ao Ministério da Educação (MEC), onde foi conselheira entre os anos de 2010 a 2016; além de ter atuado como gestora na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi MEC), como coordenadora de educação escolar indígena e diretora de políticas de educação indígena e de educação com relações etno-raciais, o que fez dela uma liderança do povo Potiguara.
Atualmente, Rita é diretora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), em Brasília. Na Flacso, ela é coordenadora do programa de estudos e pesquisas sobre povos indígenas, que estuda infâncias indígenas.
Apesar dos problemas que a educação indígena enfrenta, Rita não desanima. “É um sonho, é um desejo. É um ‘esperançar’ que eu tenho. Que nós todos cuidemos das crianças, de todas as crianças, e no meu caso, especialmente, cuidemos das crianças indígenas”, diz Rita. Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Amazônia Real.
Eis a entrevista.
Como a senhora tem acompanhado a situação dos Yanomami, que é um assunto frequente nas suas discussões?
Nós ficamos bastante otimistas com a intervenção do governo federal. O governo federal, na pessoa do presidente Lula e toda a sua equipe, está empreendendo esforços para, de fato, ajudar a resolver esse problema que é histórico. Esse problema não é só dos últimos anos, ele vem se arrastando há muito tempo. Nós ficamos [contentes] também com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e de uma atuação de uma indígena na Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Sônia Guajajara e Joenia Wapichana, respectivamente. É importante que tenha a atuação desses órgãos que tocam a política indigenista, mas esses órgãos sozinhos não vão poder fazer muita coisa.
Eles vão ter que estar extremamente articulados com os outros órgãos, por exemplo, na questão específica da educação, com o Ministério da Educação, com as secretarias estaduais e municipais de Educação, porque nós, povos indígenas, elegemos a educação como estratégia importante para a nossa própria sobrevivência. É através da educação que a gente, de fato, pode exercer o protagonismo no sentido de que a gente, quando passa pela escola, adquire as habilidades necessárias para estar em pé de igualdade com as pessoas não indígenas, sobretudo quando se ocupa lugares de poder que são estratégicos, que são necessários.
Sobre as infâncias indígenas, especialmente as infâncias do povo Yanomami, todos nós ficamos extremamente comovidos, doloridos e revoltados com a situação de descaso e de abandono em que as crianças ianomâmis estiveram durante esse tempo inteiro. É necessário ter de fato um envolvimento no caso, não só do governo, mas de toda a sociedade.
Como é sua relação com os Yanomami?
Acompanho a situação dos Yanomami há muito tempo. Desde que eu sou gestora das políticas de educação escolar indígena, então eu conheço a realidade Yanomami. Fui em reunião com eles, fui em reunião representando o Ministério da Educação, fui em reunião representando universidades, na condição de pesquisadora. Então, essa é a minha trajetória de gestora pública e de pesquisadora e também de liderança no campo da educação, por parte do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena, que eu sou uma das coordenadoras. Conheço a realidade Yanomami. O que me deixou mais [chocada] é a não assistência, na verdade. A gente tem escola criada que não funciona, que não tem estrutura. A gente tem várias comunidades que não têm escola. Eles [Yanomami] solicitam que as escolas sejam criadas, ou que as escolas criadas, que já tem, funcionem de fato.
Como é possível apoiar as crianças Yanomami?
Os Yanomami estão numa situação de crise e no momento de crise somente a coparticipação, a colaboração de todos os setores da sociedade, de todas as pessoas individualmente também, porque cada um de nós temos um poder, um micro poder, como diz Michel Foucault (1926-1984), pensador francês, a gente também pode ajudar a resolver essa situação que é de fato muito gritante, muito violenta e que leva de fato com que a comunidade Yanomami venha a sofrer e a ter esse cenário que nós pudemos acompanhar de forma bastante crítica, de forma bastante. Que notícias temos tido nos últimos anos de como estamos cuidando das crianças? Por exemplo, que 70 crianças indígenas Yanomami morreram nos últimos quatro anos. Morrem quase 13 vezes mais, por causas evitáveis, do que a média nacional. A mortalidade infantil entre os Yanomami se compara às maiores taxas do mundo, por exemplo, como a da África subsaariana.
Outra notícia também que fica difícil a gente alcançar esse esperançar que eu tenho, esse desejo, quando a gente diz que a maioria das escolas Yanomami não tem prédio, que a educação está precaríssima. De acordo com relatório do MEC, publicado na Folha de S. Paulo, a maior parte das escolas dos Yanomami está fechadas. As escolas são criadas, têm professores, inclusive contratados, mas não funcionam por algum motivo, e o motivo é a precariedade.
Como a senhora analisa hoje a situação os modelos e a implementação da educação indígena em todo o território brasileiro?
Lamentavelmente a gente tem acompanhado através do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena… Eu sou uma das coordenadoras nacionais do fórum e, em que pese a política de educação escolar indígena que o país inteiro vem construindo ao longo dos últimos mais de 30 anos, a gente ainda não tem os resultados satisfatórios como a gente merece.
Quais são esses resultados? Eu não estou falando de testes padrões, de Ideb (Índice de Desenvolvimento de Educação Básica), eu estou falando de qualidade de vida. Porque nós achamos que as escolas indígenas são lugares importantes dentro de uma comunidade no seguinte sentido: é através da educação que a gente pode lutar por outros direitos. É na educação, é na escola, que a gente aprende que temos direitos específicos, direitos como todos os demais brasileiros e que a gente desenvolve também estratégias para lutar por esses direitos.
Então, a escola é fundamental, a educação é fundamental. Mas a gente tem, infelizmente, ouvido relatos e acompanhado dados de que a qualidade da educação não é suficientemente boa, e que nem em quantidade e nem em qualidade. A gente tem ainda comunidades em que existe apenas o ensino fundamental, não existem escolas de ensino médio em todas as aldeias, em todas as comunidades. Muitos jovens indígenas, para cursar o ensino médio, têm que se deslocar da sua comunidade e ir para centros urbanos e para cidades próximas. Ou seja, esvazia o território. Sendo que o nosso desejo é que quem gostaria e deve permanecer na comunidade que permaneça para que faça com que esse território seja vivo, seja pulsante.
Entretanto, a escola ainda é um dos fatores que deixa esse território enfraquecido, esse território desassistido porque muitas famílias migram para outras cidades fora da sua aldeia para poder cursar a educação básica. Então, a gente ainda tem muito que caminhar na nossa política educacional no país.
Como a senhora descreve a educação indígena dentro de um contexto diferente das realidades não indígenas?
Quando se fala de educação escolar indígena, quando a gente fala de crianças indígenas, a gente tem que considerar as crianças indígenas em diferentes contextos. A gente tem crianças indígenas vivendo em terras indígenas, tem crianças indígenas vivendo em comunidades que são urbanas, mas estão em comunidades. Temos crianças indígenas que estão ali apenas com suas famílias frequentando escolas não indígenas.
Então o primeiro ponto é esse: a gente tem que pensar nessas situações, em que essas crianças se encontram, e que tipo de escola, que tipo de educação, que tipo de educação infantil, que tipo de cuidado nós devemos ter com essas crianças.
A primeira delas é a que a gente diz que a educação infantil e a alfabetização devem ser assentadas no paradigma da interculturalidade, porque a interculturalidade é o projeto que nós escolhemos para nos relacionar bem com o outro, conosco, porque nós somos muitas etnias, aqui é um país multiétnico. O último Censo deu conta de 305 etnias, falantes de 274 línguas, mas a gente escolheu o paradigma do viver bem para todo mundo, que é a interculturalidade.
A gente quer se relacionar, quer trocar, quer aprender com o outro. Então, o tratamento adequado, o cuidado, a educação com carinho, com cuidado, que todas as crianças indígenas merecem, é uma educação intercultural. Esses aspectos da interculturalidade são aspectos amplamente garantidos na lei, desde a Constituição Federal de 1988, a LDB, as diretrizes do Conselho Nacional de Educação. Toda a legislação brasileira vai falar desse direito a essa educação intercultural, embora essa interculturalidade não seja garantida na prática.
Durante sua palestra no simpósio, a senhora citou o líder indígena Ailton Krenak sobre como “adiar o fim do mundo”, que é título de um dos livros dele. Qual é o papel das crianças indígenas nesta tentativa de adiar o fim do mundo que o Ailton alerta?
As crianças indígenas desempenham dentro de uma comunidade e, sobretudo, dentro de uma comunidade indígena, um papel. As crianças indígenas são importantes não só do que elas vão se tornar, mas do que elas já são de fato. As crianças indígenas, assim como os maiores sábios da comunidade, como são os pajés, como são os xamãs, elas são portadoras de conhecimentos. E esses conhecimentos são necessários para o equilíbrio de toda a comunidade, o equilíbrio inclusive ambiental. A gente sabe que as crianças Yanomami, por exemplo, são as maiores conhecedoras da diversidade, da fauna e da flora daquela comunidade. E elas têm essa ligação muito grande com o cosmo de modo geral e que são importantíssimas para o equilíbrio dessas comunidades e para o mundo inteiro.
A senhora também citou outras obras, além do livro do Ailton Krenak: “A Queda do Céu”, do líder Davi Yanomami, em parceria com o antropólogo Bruce Albert, e “Crianças indígenas: ensaios antropológicos”, organizado por Aracy Lopes [antropóloga e pioneira em educação indígena], para ajudar a entender a importância de cuidar melhor da infância indígena. Como essas leituras ajudaram na sua formação, na sua percepção da importância das crianças e no apoio para transmitir conhecimento?
O que trago dessas leituras e também da vivência como gestora de políticas públicas, e pesquisadora que eu sou, três afirmativas: A primeira delas é que as crianças indígenas, assim como os xamãs, evitam a ‘queda do céu’. A queda do céu é inevitável, principalmente, por conta do modelo de desenvolvimento que nós escolhemos. Precisamos pensar em um outro modelo de desenvolvimento socioambiental que considere todos os seres na sua plenitude. As crianças indígenas vão ajudar a “adiar o fim do mundo”. E o terceiro, não menos importante, é que cuidar das crianças indígenas é garantir o nosso bem viver. Vocês sabem que a gente está aqui na terra para viver bem e viver bem é o objetivo de todos nós, e todos nós temos uma grande responsabilidade na construção desse bem viver e as crianças indígenas têm um papel fundamental na construção desse bem viver e na presença cotidiana que é esse bem viver para todo o mundo, para todos nós”, pontua.
Na obra da Aracy tem estudos do pessoal da antropologia que pesquisam sobre a temática das infâncias indígenas, das crianças indígenas, têm experiências de realidades de como é que vivem determinadas crianças em determinados contextos. São estudos teóricos e também da situação contextual de determinado povo com relação às suas crianças.
Como iniciou sua jornada na educação?
Comecei como monitora de creche, daí fui cursando a única faculdade que nós tínhamos na cidade, que era uma faculdade de pedagogia. Me formei como professora, passei no concurso público e passei a ingressar nos quadros do magistério do estado do Ceará, como professora concursada. E daí fui para a Secretaria de Educação Básica do Ceará, onde assumi, junto com um grupo de profissionais, a equipe de educação escolar indígena e ainda na década de 1990 a gente organizou a política por lá. E depois disso fiz mestrado, doutorado com a temática indígena, pesquisei formação de professores, prática pedagógica de professores.
Assumi como representante indígena, o Conselho Nacional de Educação, fui conselheira, representando os professores indígenas. Tivemos no meu conselho a definição de diretrizes importantes para a política de educação escolar indígena. Fiquei de 2012 até 2019, data da existência da Secadi [Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão]. Em 2019 a Secadi foi extinta, como diretoria de políticas públicas, e uma dessas políticas era a educação escolar indígena. Então tem uma trajetória no campo da educação escolar indígena muito grande.
Como a senhora analisa o cabo de guerra que se tornou a questão do Marco Temporal das terras indígenas?
Nós entendemos que é cenário de disputa. Quando o Partido dos Trabalhadores saiu do poder e entrou a extrema direita, gestando o País, as discussões ficaram mais polarizadas. Os lugares de debate, os lugares de diálogo e de trocas foram extintos. Com esse cenário atual estamos tendo muitas dificuldades porque, de fato, a gente está recompondo lugares, inclusive lugares de negociação, que para nós, povos indígenas, são muito importantes, e que foram nos tirados.
De modo geral, o resultado do marco temporal, é o resultado ainda do cenário brasileiro político que a gente está vivendo. Ainda tem muita luta e nós, povos indígenas, estamos firmes e fortes e resistentes para continuar no diálogo e na luta, que é uma luta cotidiana, é uma luta de resistência.
As nossas organizações indígenas, o que chamamos de movimento indígena, tem que continuar a apresentar as suas demandas e, portanto, vão tentar questionar essa lei.. O movimento não pode parar em uma situação desfavorável aos povos indígenas. A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) está cumprindo o seu papel político e institucional de recorrer, de criticar, de tentar construir alianças que possam reverter essa situação.
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