Pesquisadores ouvidos pela Alma Preta explicam como a eugenia ajudou a moldar a sociedade brasileira e como seus efeitos se manifestam e afetam a população não branca até os dias atuais
Foto: Reprodução/Modesto Brocos (1985) - "A Redenção de Cam", de Modesto Brocos (1985). A arte em questão mostra uma mulher negra retinta, levantando as mãos para o céu em agradecimento por seu neto ter nascido branco, em vez de negro.
16 DE MARÇO DE 2024 - Alma Preta
No término do século 19, a população brasileira atingia a marca de17 milhões de indivíduos. Cerca de metade dessas pessoas eram ex-escravizados e seus filhos. A partir de 1888, houve uma proibição legal contra a escravidão desses indivíduos. No entanto, a crença na inferioridade racial por causa da cor da pele persistia, especialmente entre a elite intelectual do Brasil.
Sem respaldo legal para sustentar a ideia de uma hierarquia racial, essas pessoas recorreram à pseudociência racista como justificativa. A que se destacou foi a eugenia, originada na Europa, que foi logo incorporada à sociedade brasileira.
“A eugenia no Brasil e a comunidade acadêmica coexistiam em proximidade, pois surgiram no meio dos docentes das primeiras instituições de ensino médico, dos líderes políticos e dos estudiosos da sociedade. Muitos dos responsáveis por disseminar a eugenia são amplamente conhecidos – como o próprio Monteiro Lobato. Seus nomes estão estampados em diversas ruas e avenidas do país”, destaca a historiadora, socióloga e filósofa Adriana Amorim Silva, professora e pesquisadora.
A ideia da teoria eugenista foi disseminada pelo inglês Francis Galton, responsável por criar o termo, em 1883. Ele imaginava que o conceito de seleção natural de Charles Darwin – que, por sinal, era seu primo – também se aplicava aos seres humanos.
O projeto de Galton pretendia comprovar que a capacidade intelectual era hereditária, ou seja, passava de membro para membro da família e, assim, justificar a exclusão dos negros, imigrantes asiáticos pessoas com deficiência de todos os tipos.
No Brasil, especialmente, “o raciocínio era o de que a melhoria de uma geração por meio da medicina resultaria no melhoramento biológico da geração seguinte”, explica o professor e pesquisador da Fiocruz, Robert Wegner.
Segundo ele, apesar do declínio dos movimentos eugênicos organizados e institucionalizados após a Segunda Guerra Mundial, as ideias e práticas da eugenia permaneceram ativas no Brasil e no mundo, influenciando até hoje os debates fundamentais da sociedade.
“Na medida em que a lógica eugênica é a de distinguir e hierarquizar os seres humanos, encontramos a mesma lógica operando quando nos defrontamos com o racismo, a xenofobia, a misoginia, a LGBTfobia e o capacitismo”, afirma o pesquisador.
Renato Kehl, o pai da eugenia no Brasil
O médico e sanitarista Renato Kehl (1889-1974) é considerado o pai da eugenia no Brasil. Segundo a professora Adriana, ele acreditava que a melhoria racial só seria possível com um amplo projeto que favorecesse o predomínio da raça branca no país.
“E isso se dá ao que ele [Kehl] pregava: segregação total de pessoas com deficiência, esterilização dos ‘anormais e criminosos’, regulamentação do casamento com exame pré-nupcial obrigatório, educação eugênica obrigatória nas escolas, testes mentais em crianças de 8 a 14 anos, regulamentação de ‘filhos ilegítimos’ e exames que assegurassem o divórcio, caso comprovado ‘defeitos hereditários’ em uma família”, relata.
Kehl conseguiu trazer diversas autoridades médicas para levar o projeto de eugenia adiante: um deles foi Gonçalves Vianna, da então Liga de Higiene Mental do Rio Grande do Sul. Outra figura bem conhecida era o radialista Roquette-Pinto, que liderou o Congresso de Eugenia no Rio, em 1929.
Renato Kehl foi o percursor do ideal eugenista no Brasil. Foto: Reprodução
“Nesse congresso, diversos médicos e biólogos favoráveis à ideia de eugenia estavam presentes. Eles classificaram pessoas com deficiência, como cegos, surdo-mudos e pessoas com deficiência mental, por exemplo, de ‘tarados’. Ou seja, todos além deles eram considerados como um mal a ser combatido para que a ‘raça superior’ prevalecesse”, descreve a educadora.
“Mulheres eram tidas como ‘procriadoras’ e a eugenia, para eles, era uma forma de ‘advertência do perigo que ameaça a raça com o feminismo’.”.
A Redenção de Cam
O título do quadro remete ao mito bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho Cam (ou Cã). Diz a história que Noé dormiu embriagado de vinho. Cam, seu filho, expôs a nudez do pai aos irmãos como zombaria. Ao acordar, o pai então amaldiçoou Canaã, filho de Cam, a ser “servo dos servos”. Há inclusive versões que descrevem Canaã e os descendentes de Cam como negros.
“O que vivemos atualmente senão uma reprodução da ‘Maldição de Cam’ estampada nas oportunidades de trabalho, em que uma pessoa, apenas por ser branca, se destaca? Ou em um atendimento de saúde, em que uma mulher negra não é digna de anestesia, pois é considerada mais forte?”, questiona a professora Adriana.
O quadro ao qual a pesquisadora se refere – “A Redenção de Cam” (1895), de Modesto Brocos–, é, segundo ela, uma das pinturas mais reacionárias e preconceituosas da Escola Brasileira.
A pintura foi feita pouco depois de declaradas a abolição da escravidão e da instituição da República no país. No caminho para um suposto progresso, o Brasil adotou a Europa branca como referência. Sua população, no entanto, pouco se assemelhava à europeia.
“A arte em questão mostra uma mulher negra retinta, levantando as mãos para o céu em agradecimento por seu neto ter nascido branco, em vez de negro. O que isso nos diz em resumo? Bem, afirma que a vida é muito mais fácil quando a melanina não é tão presente. E isso desde sempre. Não há como negar”, diz Adriana.
No Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911, a pintura ilustrou um artigo de João Batista de Lacerda sobre branqueamento. Ele assim descreveu a imagem: “O negro passado a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”.
O mito é reinterpretado por Brocos que aponta, seguindo as teorias da sua época, que a salvação – ou “redenção” – dos descendentes de Cam se daria por meio da sua extinção, por efeito do branqueamento – ou seja: da eugenia.
Eugenia de hoje em dia
O pesquisador e historiador Vanderlei Sebastião de Souza destaca no artigo “Eugenia, racismo científico e antirracismo no Brasil: debates sobre ciência, raça e imigração no movimento eugênico brasileiro” que os intelectuais deste país nunca foram imunes ao elitismo e ao autoritarismo brasileiro.
“Não é por acaso que esse pensamento antirracista flertava frequentemente com as ambiguidades raciais, eugênicas e antropológicas. A própria adesão à eugenia pelos intelectuais antirracistas faz parte dessa ambivalência, uma vez que compartilhavam da crença generalizada sobre a possibilidade de melhoramento racial das futuras gerações”, descreve o pesquisador.
Segundo ele, o exemplo ainda mais emblemático dessa ambivalência é o peso que o paradigma do branqueamento exercia sobre as interpretações raciais. Neste caso, nem os mesmos intelectuais, como Roquette-Pinto, deixaram de projetar, no futuro, uma nação racialmente mais diversificada.
“Essas narrativas não apenas legitimaram o mito da democracia racial como suavizaram as explicações sobre a violência que o colonialismo, o racismo e a escravidão representaram na formação das desigualdades raciais, ignorando muitas vezes a existência do preconceito e da segregação racial”, completa o autor.
Para a professora Adriana, hoje é possível entender ainda mais claramente o quanto a eugenia se infiltra na população negra, mesmo que indiretamente. O colorismo, segundo ela, é um exemplo de como a discussão ainda é relevante.
“Preto, pardo, miscigenado. Não seriam, portanto, todos não-brancos? A eugenia privilegia quem tem a pele mais clara, é verdade, mas a sociedade corrobora com esse pensamento quando vemos diversos casos de bancas de heteroidentificação desclassificando negros de pele mais clara em processos seletivos”, explica.
“Enquanto o letramento racial não se tornar uma prioridade nessa sociedade, ainda colheremos os frutos da eugenia todos os dias. E isso precisa ser uma prioridade, pois lutamos contra o tempo o tempo todo”, finaliza a pesquisadora.
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Jornalista, pós-graduada em Linguística, com MBA em Comunicação e Marketing. Candomblecista, membro da diretoria de ONG que protege mulheres caiçaras, escreve sobre violência de gênero, religiões de matriz africana e comportamento.