Ao confirmar cautelar, a Corte entendeu que a tese contribui para a desigualdade de gênero e a perpetuação da cultura de violência contra a mulher.
Em março de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que a tese da “legítima defesa da honra” contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e da igualdade de gênero. Por isso, ela não pode ser usada em nenhuma fase do processo penal nem durante o julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade.
A decisão, tomada em sessão virtual, referendou liminar deferida pelo ministro Dias Toffoli na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. O caso foi liberado recentemente para julgamento definitivo, mas ainda não há previsão de data.
Tese
A tese da “legítima defesa da honra” era utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra mulher para justificar o comportamento do acusado. O argumento era de que o assassinato ou a agressão eram aceitáveis quando a vítima tivesse cometido adultério, pois essa conduta supostamente feriria a honra do agressor.
Na ação, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) sustenta que Tribunais de Justiça ora validam, ora anulam vereditos do Tribunal do Júri em que réus processados por feminicídio são absolvidos com base na tese. Argumenta, ainda, que a prática passa a mensagem de que é legítimo absolver réus que comprovadamente praticam feminicídio com base nesse fundamento. Por isso, pede que a Corte interprete dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal para afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra.
Retórica odiosa
No entendimento da Corte, na linha do voto condutor do ministro Dias Toffoli, a infidelidade no contexto das relações amorosas se insere no âmbito ético e moral, e não há direito de agir contra ela com violência, de forma desproporcional, covarde e criminosa.
Segundo o relator, “legítima defesa da honra” não é, tecnicamente, legítima defesa, que é uma das causas excludentes da ilicitude previstas no Código Penal - ou seja, excluem a configuração de um crime e, consequentemente, afastam a aplicação da lei penal, tendo em vista a condição específica em que foi praticado determinado fato. Para Dias Toffoli, trata-se de um “recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel” utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões.
Naturalização da violência
Toffoli apresentou dados estatísticos, informações divulgadas pela imprensa e por órgãos governamentais nacionais e internacionais que atestam o aumento dos casos de feminicídio no Brasil nos últimos anos, como o Atlas da Violência 2020, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O documento aponta o crescimento de 8,3% na taxa de assassinato de mulheres dentro de casa entre 2013 e 2018. Diante de um quadro social dessa gravidade, na avaliação do ministro, o uso da tese ilegítima é um ranço que contribui para a institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e para a tolerância e a naturalização da violência doméstica.
Impunidade
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes destacou que o argumento da legítima defesa da honra remonta ao Brasil colonial e, ao longo dos anos, fortaleceu um discurso que considera a honra masculina como bem jurídico de maior valor que a vida da mulher. Mas, segundo ele, exige-se dos Poderes da República e da sociedade que não se tolere mais “não somente o discurso discriminatório, mas a impunidade dos envolvidos em crimes tão selvagens, cruéis e desumanos”.
Tolerância
O ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, ressaltou a necessidade de colocar freio à “lastimável e preconceituosa tese”, que continua a ser alegada nos Tribunais do Júri Brasil afora.
Para a ministra Cármen Lúcia, a tese não tem amparo legal e se firmou "como forma de adequar práticas de violência e morte à tolerância vívida na sociedade aos assassinatos praticados por homens contra mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que fugisse ou destoasse do desejado pelo matador".
Ranços machistas
Já o ministro Luiz Fux assinalou que os números da violência doméstica e do feminicídio registrados nas estatísticas policiais comprovam que a cultura machista e misógina ainda impera no país e “coloniza as mentes de homens e mulheres, seja de modo refletido ou irrefletido, consciente ou pré-consciente".
O ministro Gilmar Mendes também considerou inadmissível a utilização da tese, "pautada por ranços machistas e patriarcais que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade".
Nulidade de prova
Pela decisão da Corte, a chamada “defesa da honra” é uma tese inconstitucional e, por isso, não pode ser usada pela defesa, pela acusação, pela autoridade policial e pelo próprio juízo nas fases pré-processual ou processual. Qualquer referência a ela poderá levar à nulidade de provas ou até do julgamento perante o Tribunal do Júri.
Agenda 2030
A série de matérias "O STF e os direitos das mulheres" está alinhada com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
Leia a íntegra do acórdão do referendo da medida cautelar na ADPF 779.
AR/AD//CF
Leia mais:
15/3/2021 - STF proíbe uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio
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Processo relacionado: ADPF 779
fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503655&ori=1
Para PGR, uso de tese da legítima defesa da honra é inconstitucional
Augusto Aras pede ao STF que interprete regras dos Códigos Penal e de Processo Penal conforme à Constituição para impedir uso do argumento.
Migalhas - 12 de maio de 2023
O procurador-Geral da República, Augusto Aras, defende que o STF julgue inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, argumento usado ao longo do tempo pela defesa de acusados de crimes contra a vida de mulheres, em referência à prática de adultério.
Segundo a PGR, contrariando os direitos fundamentais à vida, à igualdade, à não discriminação e à dignidade humana, ainda são proferidas decisões judiciais com base nesse argumento e que resultam em absolvições de acusados por crime de feminicídio.
"Uma tese que, além de não ter amparo no ordenamento jurídico nacional, viola tratados internacionais e um amplo arcabouço normativo de proteção da vida, da integridade e da dignidade das mulheres."
A manifestação de Aras foi feita nos autos da ADPF 779. Em março de 2021, por unanimidade, os ministros do STF firmaram o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli. Agora, ainda sem data definida, o colegiado julgará o mérito do caso.
Legítima defesa da honra
Aras pede que o STF dê a dispositivos dos Códigos Penal e de Processo Penal interpretação conforme à Constituição Federal para proibir o uso da tese de legítima defesa da honra. Conforme defende o procurador-Geral, a vedação deve valer para defesa, acusação e autoridade policial, seja nas fases investigatória ou processual e até mesmo durante o julgamento pelo Tribunal do Júri, ainda que seja feita de forma indireta. O desrespeito à proibição deve levar à nulidade do ato e do próprio julgamento.
Nos casos em que os jurados reconhecerem a materialidade e autoria do crime de feminicídio, mas ainda assim absolverem o réu, contrariando as provas, deve ser assegurado recurso de apelação para que seja reconhecida a inconsistência na apreciação das provas e determinada a realização de novo julgamento por outro júri.
No parecer, Augusto Aras explica que a definição legal de legítima defesa exclui a possibilidade de sua utilização para abarcar a honra do indivíduo.
"Atentar contra a vida de uma pessoa que supostamente tenha ofendido a honra de alguém é evidentemente desproporcional à gravidade da ofensa alegada. Assim, tecnicamente, é imprópria a acomodação da tese de defesa da honra nas normas processuais penais que disciplinam a legítima defesa."
O PGR argumenta que a invalidação da tese não prejudica o direito de defesa dos réus submetidos ao júri. Os argumentos usados para defender o acusado devem se basear em preceitos constitucionais, como a dignidade humana, o direito à vida e os princípios da igualdade e da não discriminação.
Segundo ele, esses argumentos não podem ser usados como escudo à prática de homicídio contra mulheres.
"Nenhuma tentativa de justificar o assassinato de mulheres, com benefício a seus algozes, haverá de ser tolerada, sob pena de afronta imediata a preceitos constitucionais da máxima relevância e desprezo a todo um regramento que nos leva à direção oposta, contribuindo-se para a perpetuação da impunidade em crimes dessa natureza e o aumento de número já alarmante de mortes."
Soberania dos veredictos
Outro ponto afastado pelo PGR no parecer é o que trata da soberania das decisões do Tribunal do Júri que, pela Constituição Federal, são irrecorríveis. O PGR destaca que, há algumas exceções previstas no artigo 593 do CPP. É o caso de decisões manifestamente contrárias às provas colhidas nos autos. Nessas situações, o Judiciário pode determinar a realização de um novo júri.
Para o PGR, recursos à decisão do Tribunal do Júri devem ser admitidos, sempre que verificada a contrariedade à prova dos autos. Segundo ele, tal interpretação não afronta a soberania do júri visto que, em regra, não há deliberação que possa ficar imune a controle jurisdicional. Sem essa garantia recursal, a absolvição mostra-se arbitrária e desproporcional, incompatível com o sistema de proteção da mulher, conforme argumenta Aras.
Sistema de proteção da mulher
Aras lembra que o Estado conta com um aparato de proteção da vida da mulher direcionado a prevenir e reprimir qualquer tipo de violência. O artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, prevê como dever do Estado assegurar "assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações".
A lei Maria da Penha (lei 11.340/06) foi editada "para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher", promovendo alterações nos Códigos Penal e de Processo Penal e na Lei de Execução Penal, "inclusive mediante a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher".
No contexto internacional, antes mesmo da promulgação da Constituição brasileira de 1988, o Brasil aderiu à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, da ONU.
O instrumento tomou parte relevante no objetivo de alcançar a plena igualdade entre homens e mulheres, em todas as esferas da vida pública e privada. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), já está internalizada no país pelo decreto 1.973/96.
Processo: ADPF 779
Leia a íntegra da manifestação.
Informações: PGR.