Em 1997, enquanto trabalhava para a 3M, Kris Hansen descobriu que as amostras de sangue recolhidas nos Estados Unidos continham PFAS, uma família de produtos químicos perigosos para a saúde humana que se tornou onipresente nos ecossistemas. Agora revela que a empresa tentou desacreditar os seus dados e esconder a toxicidade do composto.
IHU - 16/7/2024
A entrevista é de Antonio Martínez Ron, publicada por El Diario, 13-07-2024. A tradução é do Cepat.
A notícia de que a água da chuva em todo o planeta deixou de ser adequada para o consumo abalou a opinião pública no verão de 2022. Na época, uma equipe de pesquisadores revelou que a água das nuvens também estava contaminada por substâncias sintéticas perfluoroalquiladas, mais conhecidos como PFAS ou “produtos químicos eternos” (forever chemicals), porque sua principal característica é não se degradarem. A vantagem que a indústria viu nestes polímeros de carbono e flúor desde a criação do teflon em 1938 tornou-se um dos grandes problemas ambientais: não apenas estão em todos os cantos do planeta e levarão séculos para desaparecer, como também entram no nosso corpo através da água e dos alimentos e podem ser nocivos à nossa saúde.
Conforme afirma o relatório elaborado pelo Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico, estudos científicos da última década revelaram que os PFAS “estão relacionados com o enfraquecimento do sistema imunológico, danos no fígado, aumento dos níveis de colesterol, diminuição do peso após o nascimento, câncer renal e testicular e alterações endócrinas”, entre muitos outros efeitos. E graças às denúncias perante os tribunais de cidadãos afetados pela contaminação, e à investigação exaustiva de jornalistas como a americana Sharon Lerner, sabemos agora algo mais grave: que as empresas que criaram estas substâncias realizaram testes que mostraram a toxicidade desses produtos, mas esconderam seus resultados durante anos.
Em artigos publicados conjuntamente pelo The New Yorker e ProPublica há algumas semanas, Lerner revelou que Kris Hansen, uma das cientistas que trabalhou nesses laboratórios, foi menosprezada, ignorada e afastada do seu trabalho pelas suas descobertas. Enquanto trabalhava como química para a 3M nos Estados Unidos, Hansen descobriu em 1997 que substâncias perfluoroalquiladas estavam presentes em amostras de sangue de pessoas de todo o país que não tinham qualquer relação ou proximidade com a fábrica onde essas substâncias eram produzidas, além de serem encontrados na cadeia alimentar e nos ecossistemas.
Durante o tempo em que fez pesquisas para a empresa, lembra Hansen vinte anos depois, seus superiores tentaram colocar em dúvida seu profissionalismo, os sistemas de medição que usava e seu critério. A pesquisadora abandonou a tarefa acreditando na palavra dos seus superiores sobre a inocuidade daquelas moléculas para a saúde, sem saber que a 3M já tinha realizado estudos em animais duas décadas antes. No final de 2021, ao assistir a um programa de televisão onde o tema era discutido, Hansen começou a revisar a literatura científica e descobriu como havia sido enganada, o que finalmente a encorajou a contar sua história.
Conversamos com Kris Hansen por videoconferência, de sua casa em Minnesota, dias após a publicação de uma longa reportagem na ProPublica em que revela a sua história.
Eis a entrevista.
Quanto tempo você trabalhou para a 3M?
Trabalhei 26 anos na 3M e cerca de quatro anos na indústria fluoroquímica.
Qual foi o seu trabalho com essas substâncias perfluoroalquiladas?
Eu tinha feito o doutorado em química e fui contratada como analista do departamento ambiental da 3M e foi assim que conheci os PFAS da empresa. Comecei a verificar diferentes situações de controle e foi cerca de um ano depois que descobri que havia PFAS nas amostras de sangue. Comecei a trabalhar na 3M em 1996 e a estudar esses compostos em 1997.
O que você encontrou nas amostras de sangue?
Constatamos essa presença pela primeira vez em humanos, observando amostras que obtive de um banco de sangue da população em geral. E nesse sangue descobri o PFAS. Comecei a olhar de forma mais geral e percebi que havia vestígios de PFAS em todas as amostras de sangue que obtive de pessoas de todas as partes dos Estados Unidos.
Quando descobriu que o composto não estava presente em amostras de sangue antigas?
Com o tempo, fizemos testes de sangue coletado em 1950 e não havia sinais de PFAS nessas amostras. Essa foi uma informação muito útil, porque nos mostrou que os PFAS que encontrava no sangue eram reais e que foi a comercialização destes produtos que realmente contaminou todas as outras amostras.
A empresa tentou fazer você desistir?
Sim, me fizeram muitas perguntas sobre os dados. E algumas delas eram razoáveis, mas quando as respondemos, os responsáveis começaram a me questionar como cientista. Disseram-me coisas, tais como: que eu tinha um ego muito grande ou que tentava ser o centro das atenções.
Você passou anos convencida de que não era perigoso para a sua saúde porque foi o que lhe disseram, certo?
Certo. Trabalhei no problema durante vários anos e identifiquei um total de quinze PFAS no sangue da população em geral e encontramo-los amplamente distribuídos no ambiente e na cadeia alimentar. Mas quando a 3M anunciou a decisão de fechar a divisão daqueles que eram os piores compostos, na minha opinião, eu tinha conseguido algum sucesso e comecei um novo trabalho. Mas você tem toda razão: sempre pensei que esses produtos químicos fluorados, embora estivessem no meio ambiente, não tinham nenhum efeito sobre a saúde humana.
Em que momento você percebeu que estava errada e que a 3M estava tentando enterrar seus resultados? Foi vendo um programa de televisão?
Sim. John Oliver faz um noticiário muito engraçado, e eu estava assistindo e no começo fiquei aborrecida [com o que disse sobre os PFAS], porque pensei que ele estava exagerando sobre os efeitos na saúde. Mas assim que procurei os estudos científicos para provar que ele estava errado, percebi que ele estava certo, que tudo o que dizia era verdade. E nos 20 anos em que não trabalhei com produtos químicos fluorados, muitos bons pesquisadores realizaram trabalhos científicos muito poderosos sobre o que estes compostos fazem. E têm um efeito muito significativo na saúde. Isso me assustou e me alarmou quando descobri.
Como você decidiu contar o que sabe?
Após ler sobre os efeitos na saúde, passei muito tempo examinando muitos dos documentos internos da 3M que se tornaram públicos em um processo judicial que o Estado de Minnesota havia arquivado. E foi olhando a literatura científica e os documentos históricos da 3M que compreendi até que ponto fui enganada quando trabalhei ali, até que ponto mentiram para mim. Nesse momento procurei a repórter da ProPublica Sharon Lerner e perguntei se ela queria conversar. E foi assim que começamos a trabalhar juntas.
Você teve contato com a empresa ou com ex-colegas ou ex-chefes?
Não tive nenhum contato com a 3M e conversei com vários ex-colegas que ainda trabalham lá, técnicos e engenheiros que são boas pessoas. A maioria diz que não está surpresa com a minha história. E eles não estão chateados comigo, estão apenas decepcionados com a empresa.
Há alguns anos, soube-se que toda a chuva do planeta contém “produtos químicos eternos”. Como se sente sabendo disso? Isso poderia ter sido evitado?
Sim, penso que poderia ter sido evitado. E não apenas na 3M. Existem muitas outras empresas agora que fabricam produtos químicos fluorados. Em alguns aspectos, a 3M foi líder, em 2002 começou a fabricar compostos mais bioacumuláveis e nos últimos dois anos anunciou que iria reduzir a sua produção. Mas,mesmo assim, é muito decepcionante que os responsáveis por todas estas empresas tenham continuado durante gerações a fabricar estes compostos sabendo que os estavam jogando no ambiente.
Acredita que aqueles que decidiram fazer isso não pagaram por suas responsabilidades?
As empresas nunca são responsáveis e, sobre os chefes que tomam as decisões, nem se veem os seus nomes. Portanto, não, não creio que nenhum deles tenha pagado qualquer preço pessoal pelas suas más decisões.
Entre 1951 e 2000, a 3M produziu o equivalente ao peso do Titanic destes produtos. Como isso será removido da natureza?
Penso que é tarde demais para removê-los. Penso que o que temos de fazer é trabalhar pela criação de legislações e regulamentações que proíbam a utilização destes produtos químicos, porque milhões de quilos continuam a ser fabricados e adicionados aos produtos. Minnesota aprovou recentemente uma lei que proíbe o uso intencional de PFAS em produtos de consumo. Temos as leis mais rígidas dos Estados Unidos e espero que outros Estados e outros países façam o mesmo. Porque a única forma de um dia eliminá-los é parar de jogá-los na natureza, algo que continuamos a fazer.
A sua história se repete continuamente: uma empresa cria algo, descobre que é maléfico e tenta escondê-lo. Como cientista, como acha que se pode evitar essa espiral?
É muito frustrante. Acredito que os líderes destas indústrias ganham tanto dinheiro que são incapazes de tomar decisões que tenham em conta a saúde pública; sempre tomam decisões tendo em mente os lucros da empresa. Penso que precisamos responsabilizar os indivíduos por estas decisões, todos aqueles cujos nomes ignoramos, em empresas que ainda prosperam. É muito triste.
Olhando para trás no tempo, você acha que recebeu tratamento humilhante na empresa?
Sim, foi humilhante, mas também assustador. Às vezes, eu tinha medo de ir até o carro no final do expediente, porque achava que alguém poderia me procurar e perguntar por que eu estava fazendo aquelas coisas ruins com a empresa.
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