Em artigo ao Portal Catarinas, as Católicas pelo Direito de Decidir analisam a contradição no discurso de autoridades políticas que se dizem em defesa da vida enquanto estimulam o armamento e desumanizam meninas e mulheres.
Por Católicas pelo Direito de Decidir
Nos últimos dias temos assistido a uma escalada de violências e ataques contra a menina de Santa Catarina, de 11 anos, violentada, e que teve o aborto previsto em lei negado por uma juíza e uma promotora. Na esteira das perseguições, encontram-se os veículos de imprensa que denunciaram a grave violação dos direitos dessa criança, agora perseguidos por cumprirem o papel ético de trazer ao conhecimento da sociedade as arbitrariedades cometidas por agentes do judiciário e por profissionais de saúde.
Não bastassem todas as irregularidades cometidas por agentes do judiciário, e aproveitando o período eleitoral, uma deputada – que ostenta fuzis nas redes sociais – tem se utilizado do caso dessa menina, que causou tanta dor e sofrimento familiar, para impulsionar a sua carreira na política catarinense, como proponente de uma “CPI do Aborto”, autorizada nesta terça-feira (19) pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina.
Trata-se da tentativa de mobilizar as bases eleitorais, de cunho moral, e fazer instrumentalização política a partir deste triste episódio.
Se de fato parlamentares da Alesc e o próprio Governo Federal quisessem apurar “crimes” cometidos no caso do aborto legal da menina de 11 anos, deveriam começar por suas próprias gestões que sistematicamente têm feito campanhas contra a educação sexual nas escolas e cortado o orçamento federal destinado ao combate à violência contra as mulheres. A escassez de recurso orçamentário para a educação, por exemplo, deixa muitas crianças fora da escola, negando-lhes o direito ao conhecimento e à dignidade humana.
Mas estariam estas e estes parlamentares “cristãos” engajados em uma real defesa da dignidade humana, a partir do que o próprio cristianismo ensina? Não – e nunca estiveram realmente engajados em defender a vida.
Munida de ódio e violência, a chamada “bancada da Bíblia” corrói as próprias bases do cristianismo e da laicidade do Estado em busca de fomentar os próprios interesses, privilégios e ideologia.
Na tradição cristã católica, os valores da paz, fraternidade, não julgamento, justiça, igualdade e acolhimento são fundamentos dos seus ensinamentos. Acolher e cuidar são as principais ações a serem praticadas para com aquelas e aqueles que sofrem violências e injustiças. A violência física, no caso o estupro sofrido pela menina de 11 anos, já seria motivo suficiente para que fosse amparada. Porém, os discursos fundamentalistas religiosos desumanizam meninas e mulheres, justificando uma suposta “defesa da vida” em detrimento dos sofrimentos e abusos cometidos contra elas, ferindo sua dignidade e lhes negando o estatuto de pessoa. Somos tratadas como sub-humanas, destituídas de vontade própria e sem direitos, o que afronta diretamente os princípios de igualdade e fraternidade, tão caros ao cristianismo.
Ao contrário do que se possa imaginar, a criminalização do aborto não é um consenso entre os fiéis cristãos, especialmente católicos. Em situações moralmente difíceis, católicos e católicas podem recorrer à liberdade de consciência e atuar de acordo com o que consideram sensato, razoável e bom, ainda que essa decisão não coincida com as normas e com as autoridades da Igreja.
E as mulheres católicas têm acessado a sua liberdade de consciência, tendo em vista que são as que mais têm realizado o procedimento de interrupção voluntária da gravidez: 56% são católicas e 26% são evangélicas, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (2016).
O catolicismo não é um bloco monolítico, sem qualquer espaço para a pluralidade de pensamentos e nunca houve consenso sobre a questão do aborto entre seus teólogos. Nessa discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos, o lado tomado por políticos fundamentalistas é o da condenação e do desrespeito à autonomia das mulheres e de todas as pessoas que gestam. Com base em uma suposta “defesa da vida” abstrata, são esses mesmos parlamentares os primeiros a apoiarem a redução da maioridade penal e o genocídio de jovens negros e periféricos por meio do discurso bélico e armamentista.
É válido pontuar que defender armas e a “vida”, como fazem a deputada e o governo que ela representa, são ações totalmente incompatíveis com os ensinamentos do cristianismo, e revelam o quão danosos esses pensamentos podem ser na esfera pública, uma vez que podem impactar em decisões tomadas pelo legislativo.
Em tempos de instigação do ódio e do medo como política, os corpos das meninas e mulheres se tornam alvo. A todo momento os nossos direitos são usados como moeda de troca. No entanto, nos processos eleitorais fica evidente o uso político que fazem dos nossos direitos. O atual Governo Federal fomenta a violência contra as mulheres, facilita o porte de armas e incentiva os seus eleitores a eliminarem seus oponentes.
Queremos justiça reprodutiva para assegurar os Direitos Humanos relacionados à dignidade das pessoas. Defendemos a dignidade humana em todas as suas esferas, com casa, comida, educação de qualidade, acesso à saúde e com educação sexual.
Enquanto católicas feministas, defendemos a vida — não a “vida” abstrata que desconsidera a dor de uma menina estuprada — mas a vida concreta, a partir da realidade de todas as meninas e mulheres que cotidianamente carregam a cruz do machismo, do patriarcado e das desigualdades sociais. Queremos vida em abundância.
artigo publicado originalmente no portal Catarinas - Jornalismo com perspectiva de gênero, em https://catarinas.info/politicos-fundamentalistas-nao-defendem-a-vida/